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Armado aos Cucos: Paelha Augusta

A paelha é o novo prato típico regional da Baixa. De uma assentada, abandalha-se a cozinha de dois povos.

José Margarido
Escrito por
José Margarido
Crítico Comer&Beber
Armado - paella
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Em 2022, investigadores da Universidade Católica de Valência procuraram fixar a receita original da paelha. Após 400 entrevistas a cozinheiros não profissionais, todos maiores de 50 anos e residentes em 266 pueblos da comunidade valenciana, concluiram que não há ortodoxia exacta, mas há pelo menos meia dúzia de preceitos obrigatórios e dez ingredientes essenciais. Não os listo aqui, que os forretas dos meus editores só me dão 2500 caracteres e já estou prestes a bater nos 500. Mas o meu ponto é outro.  

Para os espanhóis, a paella é assunto sério e com honras de academia. É a criação mais internacional da sua gastronomia, um Bién de Interés Cultural. É por isso também a mais ameaçada. É uma das faces do fenómeno conhecido como gastrificação (soa a azia e anda lá perto): vítima da sua popularidade, uma especialidade regional acaba globalmente uniformizada numa versão industrializada, sem alma e desligada das raízes. Acontece com a paelha o que aconteceu com o sushi, os tacos, os crepes ou a pizza. Curiosamente, tudo pratos que convivem em menus da Rua Augusta. 

Nos 550 metros que vão do Terreiro ao Rossio, sem entrar por qualquer transversal ou paralela, conto 13 restaurantes abertos numa segunda-feira de Fevereiro. Desses, vários identificam-se expressamente como sítios de cozinha tradicional portuguesa e a especialidade parece ser a caldeirada — em ementas plastificadas, atafulham-se imagens de comida de toda a sorte, sempre com o apelo visual de uma publicidade ao Imodium. Dez deles têm paelha no menu.

A paelha é uma criação gastronómica nascida a 950 km. Bem sei que o bacalhau também nada a quatro mil quilómetros do meu prato e é lá que ele acaba, toda a santa sexta-feira, atulhado em grão e afogado em azeite. Mas a questão é outra: a paelha diz nada sobre nós. A maior aproximação portuguesa será o arroz à valenciana, que na verdade é mais uma interpretação de outro prato universal espanhol, o arroz con cosas — como o nome indica, é para ser feito mais ou menos à balda e com o que se tem à mão. E no entanto, ei-la aqui, a paella servida como especialidade, a alimentar memórias de milhares de turistas, entre baldes de sangria açucarada. 

Não sei se é a nossa forma de lembrar que o mundo é global e miscigenado e que os portugueses se orgulham de ter responsabilidade nisso. Sendo o caso, mais valeria mandar os camones para a Rua do Benformoso. Na Rua Augusta, o melhor que conseguimos é maldizer os espanhóis. Depois de comer isto, suponho que ninguém fique com grande apetite para os visitar.  

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