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Armado aos Cucos: Um bife em forma de assim

“Ó Portugal, se fosses só três sílabas / de plástico, que era mais barato!” Alexandre O’Neill, “Portugal”, in Feira Cabisbaixa, 1965.

José Margarido
Escrito por
José Margarido
Crítico Comer&Beber
Armado aos Cucos - Café Gelo
Time Out Portugal
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René Magritte desenhou um cachimbo e legendou: “isto não é um cachimbo”. A pintura, a que o belga chamou A Traição das Imagens, é uma peça popular do surrealismo e eu distraio-me a pensar nela enquanto avalio o quadro em que eu próprio me enfiei. Em duas pinceladas: estou na esplanada do Café Gelo, ao Rossio, a comer um Bife Alexandre O’Neill; à minha frente, um camone de peúga branca fecha a refeição com uma cachimbada. Nem de propósito.

Em linguagem comum, surreal confunde-se com irreal. Dizemos surrealista de uma situação bizarra, como quem diz aquela palhaçada do Chega no Parlamento foi surreal. Magritte quereria dizer outra coisa — a imagem do cachimbo não é o cachimbo e a representação da coisa não deve ser confundida com a coisa em si. Em sentido artístico, surreal implica a negação da lógica e a valorização do inconsciente. Ora, abancar na Baixa e pedir um bife de uma ementa ilustrada desafia qualquer lógica e faz de mim um inconsciente. 

Mas eis-me aqui, na morada do original Café Gelo, fundado em 1883, guarida célebre de elites clandestinas. Nos idos de 1950, acolheu o Grupo do Gelo, colectivo informal de surrealistas, com Cesariny, Luiz Pacheco e outros. Em 1908, daqui saíram Alfredo Costa e Manuel Buiça, com rancor bastante para assassinar o Rei D. Carlos. Pergunto-me agora se foi de alguma coisa que comeram.

A casa é um all in one, marisqueira, steakhouse, pizzaria, bar de cocktails, e evoca a história do Gelo num menu ilustrado de 50 páginas. Há T-Bone Miguel Torga, Bife Eça de Queiroz, Tomahawk Mário Cesariny, etc. Se as imagens fazem jus aos pratos, pergunto-me se alguém já pediu uma Feijoada Chico Buarque de livre vontade e como é que isso lhe terá corrido. É que os olhos também comem e os meus estão à beira do desarranjo.

Vou num Bife Alexandre O’Neill. Descrição: vazia grelhada com risotto de tomate e molho à chef. Resultado: arroz de tomate ácido feito com arbório, mortalha para um bife em forma de assim, esquartejado em seis tiras fibrosas como fazenda, passadas em ponto corno e já com saudades da frigideira. Uma homenagem involuntariamente perfeita a O’Neill, a dias do seu centenário, ele que como poucos soube esfregar-nos na cara o lado risível da nação — aqui em versão novilho. Boa imperial, um café, trinta paus e tchau.

Do Rossio ao Terreiro do Paço, vai um alvoroço de feira com quinquilharia very typical e um mundo established since terça-feira. É uma espécie de navio mercante com pavilhão de Portugal — opera sob a nossa jurisdição, mas não é necessariamente nosso. Para milhares de turistas, é a imagem que o país dá de si mesmo. Ao menos tivesse uma legenda de Magritte.

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