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Nunca se falou tanto da relevância de estátuas e monumentos no espaço público. O debate está na rua, nas redes sociais e agora também na programação do Teatro do Bairro Alto (TBA), com Ditas e Desditas da Estatuária Lisbonense. O projecto é de Isabel Brison, artista visual com formação em escultura (e em programação informática), que reflecte sobre as estátuas de Lisboa, em texto e imagens, ao longo de seis episódios. Os primeiros dois podem ser vistos online desde terça-feira, 2 de Março, data de estreia deste programa de acesso livre. Os restantes serão disponibilizados, também em dupla, até ao final do ano.
A reflexão proposta por Isabel Brison deambula entre a história e a ficção. O primeiro episódio é dedicado à Praça do Império, em Belém; o segundo versa sobre a estátuas retiradas do espaço público em 1974. Em Junho chegarão os episódios dedicados às estátuas dos escritores (Luís de Camões, Eça de Queirós e Fernando Pessoa) e também às estátuas sobre mulheres; em Setembro, haverá Ditas e Desditas sobre esculturas feitas no pós-25 de Abril e das quais se perdeu o rasto.
Formada nas Belas-Artes de Lisboa, Isabel Brison trabalha como programadora informática do outro lado do mundo, em Sydney, para onde se mudou em 2014. Mas a génese deste novo projecto nasceu em Portugal. “A ideia surgiu-me há 13 anos, quando andava pela cidade a recolher material para as fotomontagens que comecei a fazer nessa altura. Uns anos antes, ainda na faculdade, tinha feito um trabalho sobre a escultura do Estado Novo, o que me levou a prestar mais atenção às estátuas que se encontram pela rua e ao seu enquadramento”, explica à Time Out, lembrando este que foi um claro ponto de viragem. “Tive logo a consciência de que alguma daquela estatuária não reflectia os meus valores e, como estava a trabalhar sobre o espaço urbano, naturalmente tive vontade de ensaiar alterações ao mesmo.” Essas experiências resultaram numa série de fotomontagens e duas fanzines, em 2010. Três anos depois, voltou ao tema numa colaboração com Nuno Rodrigues de Sousa, também numa fanzine e numa palestra que “conta a história de uma escultura em particular, que também vai aparecer aqui, num dos últimos episódios”.
O Ditas e Desditas é uma etapa de um trabalho que vem desenvolvendo ao longo dos anos e que pode assumir diferentes formatos. O que facilitou a selecção de estátuas a tratar, já que abordou algumas peças noutros trabalhos e poderá vir a tratar outras, noutros formatos, no futuro. “Por agora, escolhi o que achei funcionar melhor como conjunto.”
Neste caso, falamos de episódios compostos por texto e imagem, em que há “trechos assumidamente ficcionais”, diz Isabel Brison, que arriscou, por exemplo, contar histórias “do ponto de vista das próprias estátuas”. Um aspecto mais lúdico do trabalho que agora apresenta, também acompanhado de humor. Fora de brincadeiras, uma das histórias com as quais se cruzou e que considera ter sido a mais surpreendente foi a do monumento da Praça das Águas Livres na Damaia, um monumento ao 25 de Abril construído por operários da SOREFAME. Pode ouvir um bocadinho da sua história no Dito e Feito, o podcast do TBA, e a história completa num dos últimos episódios deste projecto.
Num dos primeiros, Isabel Brison fala sobre a Praça do Império, criada para acolher a famosa Exposição do Mundo Português, que decorreu apenas durante seis meses e que também deu origem a um primeiro Padrão dos Descobrimentos, demolido em 1943 (a versão actual é uma construção de 1960). O que se mantém da altura é a Fonte Luminosa do Jardim da Praça do Império, inicialmente rodeada por brasões florais das capitais de distrito, das ilhas e ex-colónias portuguesas [colocados em 1961 e desarranjados há largas décadas] que têm estado no centro de uma polémica, já que a Câmara de Lisboa tencionava esquecê-los de vez. Como olha Isabel Brison esse debate? “Estou pasmada com o facto de um arranjo floral causar tanta polémica. Os jardins não são, por natureza, espaços de características fixas e imutáveis, nem devem tentar sê-lo, é totalmente desadequado à sua função recreativa e salutar”, defende. Imutáveis ou não, será possível não politizar o debate sobre o papel da estatuária do espaço público? “Não sei se é possível deixar a política de fora deste debate, já que muitas das estátuas de que tratamos foram colocadas na rua por motivos políticos. Pegar em determinadas figuras históricas e tecer uma narrativa sobre elas, sob a forma de um monumento, é um acto político”, diz, embora considerando que o elemento política num debate não seja necessariamente mau. “Tentar ignorar os aspectos políticos da questão é que não é saudável. E é importante termos este debate porque o espaço público, na medida em que é um espaço partilhado, tem de nos servir, de ser habitável e útil e confortável para todos.”
O leitor ainda está a pensar como é que uma artista se torna programadora informática? Ao que parece, não é coisa rara. “No meu caso, comecei a programar porque queria fazer um site pessoal e também para explorar as possibilidades do código como meio de trabalho artístico. Gostei de o fazer, fui aprendendo mais, e acabou por se tornar um emprego a tempo inteiro”, conta. “Não é assim tão invulgar: conheço muita gente que veio parar à informática vinda das mais diversas áreas. O que talvez seja menos vulgar é continuar a ter uma carreira artística em paralelo.” Aproveite por isso para explorar o site de Isabel Brison, onde encontra projectos como The Plinths of Sydney (ou Os Pedestais de Sydney), uma investigação em progresso sobre a presença e história dos pedestais da metrópole australiana. “A situação de Sydney é interessante porque a cidade não tem grandes espaços abertos, como as praças de Lisboa, onde se encontram os monumentos dos estadistas mais proeminentes. Isso resulta por vezes em colocações estranhas, em espaços recônditos ou desajustados, da estatuária monumental”, explica. Mas, mesmo escondidas, não deixam de representar um problema para Isabel, pelo seu simbolismo: “Muitas das figuras retratadas foram responsáveis por atrocidades cometidas nos tempos coloniais, e esse debate também não tem sido feito com muito sucesso na Austrália.”