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“Conta uma coisa engraçada.” Já de microfone na mão, Aliu chega-se à frente. Um dia, estava na estação de Telheiras, à espera do metro. O metro chegou, as portas abriram-se e ele, naturalmente, deixou que as pessoas saíssem. Naquele dia as pessoas estavam especialmente mais lentas, mas Aliu esperou. Quando se preparava, enfim, para entrar, deixou que a bengala o guiasse, tal como de costume. Nesse momento, começou a soar o sinal de fecho de portas e a bengala ficou dentro da carruagem. Ele, espantado, ficou de fora. A bengala foi até ao Cais do Sodré. Um tempo depois, já o objecto e Aliu reencontrados, voltou a acontecer. Segue-se Vasco e uma história que envolveu vários meios de transporte e uma chegada atribulada a um ensaio; Tony, que foi acusado de fazer barulho às tantas da manhã no seu prédio; Mia, que ao tentar infringir a lei, foi derrotada pelas cancelas do metro; e finalmente André, que depois de ter almoçado no refeitório, acabou na casa-de-banho com o resto da escola. Outras perguntas vieram depois para os cinco responderem neste A Tempo – Comunicação.
Este é o primeiro momento de um tríptico sobre o ócio, pensado por Marco Paiva. O actor e encenador já trabalha a inclusividade na criação artística desde antes da fundação da Terra Amarela, companhia que dirige desde 2018, e, tal como os outros antes, este projecto – A Tempo – dá palco a intérpretes com deficiência. Mas não nasceu apenas dessa vontade, pretende até ir mais além. “Os artistas são figuras que têm de ser eficientes, eficazes, têm de gerar produto que é capitalizável. E a arte monta-se assim e, de repente, parece que começamos a descurar esse lugar da relação. Mas o que é que somos um para o outro enquanto estamos a produzir uma obra de arte?”, questiona-se Marco Paiva, após um ensaio. O A Tempo chega para contrariar esta tendência, para “voltar a esse sítio iniciático” no processo de criação.
![A Tempo – Comunicação](https://media.timeout.com/images/106240260/image.jpg)
“Por outro lado, pelo desejo que a Terra Amarela tem enquanto estrutura, de cruzar artistas muito diversos, que nunca se cruzariam se não fossem provocados a isso, e que possam verdadeiramente estar juntos para criar um conhecimento profundo sobre si próprios”, diz o curador, que por isso quis juntar três duplas de artistas de linguagens diferentes para formar um conjunto de performances que vão ser apresentadas no São Luiz. “A ideia foi, de alguma maneira, pensar em seis pessoas que viessem de lugares artísticos, pessoais e identitários muito distintos para depois criar estas duplas semi-improváveis que construíssem estes encontros.” A primeira peça é então da autoria de André Uerba e Tony Weaver e é apresentada entre 12 e 15 de Fevereiro.
Primeiro, comunica-se
Pelo que vemos montado em palco, A Tempo – Comunicação parece tratar-se de uma conversa, de um debate ou conferência. Há várias cadeiras posicionadas em redor de uma mesa e a André e Tony juntam-se Bárbara Pollastri, que traduzirá em português e em língua gestual portuguesa o que está a ser dito, Aliu Baio, Mia Menezes e Vasco Seromenho, que neste ensaio fazem a vez das três pessoas que serão convidadas a participar na peça, duas delas do público, uma surda e outra não, e a terceira que é trazida pelos artistas e que também é surda. A peça começa com uma apresentação de cada um e depois de se sentarem, na parede atrás deles é projectado um temporizador de uma hora. À medida que perguntas como “já pensaste em desistir?”, “pensas na morte?” ou “conta uma coisa engraçada” aparecem, eles vão respondendo até o tempo chegar ao zero.
![Tony Weaver e André Uerba](https://media.timeout.com/images/106240261/image.jpg)
“É um dispositivo e é também uma forma de conhecer pessoas. E é pensar um pouco no que é que eu quero criar, o que é que eu quero dizer em palco. Que espaço é este? Para que vozes? Porque se for só eu e o Tony a falarmos, é aborrecido para mim”, começa por dizer André Uerba, que destaca o processo de criação como forma de aprender a comunicar com Tony, que é surdo, sem ter apenas Bárbara como ponte entre os dois. Em menos de nada, Tony acrescenta: “É a possibilidade de aproveitarmos ao máximo experiências e perspectivas diferentes, que vão conversando entre elas. Surdos e ouvintes são identidades diferentes, então vamos aproveitar este momento para conversarmos.”
Depois, o espaço e a memória
Tal como a comunicação, os outros temas, explica Marco, também “atravessam o trabalho da Terra Amarela”. O primeiro porque a companhia trabalha com artistas de línguas e formas de expressão diferentes; o espaço no que toca à ocupação do mesmo e à acessibilidade; a memória no sentido em que aquilo que a companhia se propõe a fazer hoje tem as suas bases num tempo muito anterior ao seu. A cada dupla, o curador atirou um dos eixos temáticos do tríptico e apercebeu-se que, sem pensar muito nisso, o puzzle que começava a montar fazia todo o sentido.
À dupla seguinte, composta por Mia Menezes e André Murraças, calhou então o segundo conceito – o espaço. A Tempo – Espaço apresenta-se entre 19 e 22 de Fevereiro e é uma proposta para pensar na acessibilidade, quer seja comunicativa ou espacial, e o que é que a sociedade entende como acessibilidade. Mesmo ainda em fase de ensaios desta “peça de teatro pura e dura”, como é apelidada por Mia, já há muito que dela se retira. Para André, a experiência de trabalhar com a artista, que tem sequelas de uma paralisia cerebral neonatal, tem sido um abre-olhos. E espera que não o seja só para ele, mas também para o público. “Apesar de eu ser uma pessoa informada e estar dentro de uma área onde se está a trabalhar estes assuntos, eu descobri que havia muita coisa que estava a fazer mal, a dizer mal, a projectar mal. E fui com muitas ideias pré-concebidas, não tanto do que é que os outros são, mas de como é que eu me devia comportar”, afirma.
![Mia Menezes e André Murraças](https://media.timeout.com/images/106240262/image.jpg)
Já para Raquel André, que está a trabalhar com Aliu Baio em A Tempo – Memória, que vai ser apresentada entre 26 de Fevereiro e 1 de Março, esta tem sido uma oportunidade de pensar noutras formas de teatro e na relação dos intérpretes e encenadores com o espaço, a cenografia e a música. “Nós fazemos teatro a partir de uma certa ideia de fazer teatro, que é uma ideia visual, uma ideia super normativa, tanto de encenação como de dispositivo com a plateia. E, por mais que eu ache que até sou uma criadora de cruzamento disciplinar, eu nunca iria chegar a esta experiência de trabalho que estou a ter com o Aliu se não fosse com ele”, acredita Raquel, que vai estar vendada em palco, o que vai levar a que a sua relação com o espaço seja muito diferente da de Aliu, que é cego. Para esta performance, a dupla procura encenar um texto clássico, mas ao mesmo tempo, estão a experimentar coisas como jogar futebol para cegos ou ter um laboratório de cheiros.
O resultado dos encontros
No fundo, é isto que Marco pretende com este projecto, que os encontros não tenham sido indiferentes e que tenham provocado alguma coisa nos artistas. E, ao que parece, provocaram. “Muitas vezes, os artistas com deficiência são os apêndices de artistas normativos. Então, como é que se faz essa inversão? Como é que se cria esse espaço? Como é que se abre essa zona de não separação? Acho que acontece em Portugal e em Berlim, onde vivo, também há muitos grupos de teatro só de pessoas com deficiência. Pergunto-me porque é que não há mais”, diz André Uerba.
![Aliu Baio e Raquel André](https://media.timeout.com/images/106240263/image.jpg)
O cenário parece avizinhar-se risonho, mas nunca sem alguns obstáculos a ultrapassar. “Nem todos têm a oportunidade de chegar a sítios mais relevantes ou então não tiveram tantas oportunidades. Mas sinto que o caminho se vai fazendo, sempre com muitas barreiras”, pensa Mia Menezes. “Antes era impossível estar aqui hoje”, garante Tony Weaver. “É muito importante que nenhum de nós desista disso. Não desistamos, porque as nossas mãos juntas é que podem realmente construir”, acrescenta o artista. E Aliu Baio reitera: “De repente, há aqui uma porta que se abre, há aqui um caminho que se está a percorrer, há coisas a acontecer e, embora seja um caminho lento com subidas e descidas, está a ser um caminho positivo.”
Apesar da Terra Amarela ter sempre explorado estas questões e trabalhado com artistas com deficiência, Marco Paiva reconhece que há um problema maior, estrutural, e que por muito que a arte não o resolva, “estes pequenos passos vão mudando paradigmas e vão provocando conversas e discussões sobre estas temáticas e sobre aquilo que são as linguagens artísticas que vão trazer mudanças de alguma maneira”.
Todos os espectáculos são complementados por língua gestual portuguesa, interpretada por Bárbara Pollastri, e áudio comentário poético de Cintya Floriani (que em Novembro lançou um livro sobre a experiência das pessoas cegas).
São Luiz Teatro Municipal. 12 Fev-1 Mar. Qua-Sáb 19.30. 12€
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