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Ocupam grande parte das zonas nobres da cidade, quase sempre com esplanadas vistosas. Apelidam-se tradicionais, vendem-se com fotografias pouco apelativas de comida, e promovem-se na rua com empregados de menu na mão, qual Feira Popular, indiferentes a críticas, focados apenas em sentar mais alguém. São armadilhas para turistas. Não há outra forma de o dizer. E são cada vez mais, à semelhança das lojas de souvenirs, todas iguais, porta sim, porta sim. Mas se, mesmo que nos possa ultrapassar o modelo de negócio, nas lojas sabemos bem o que vendem (ímanes, t-shirts, azulejos, cortiça, galos de Barcelos, porta-chaves, chapéus), nos restaurantes só mesmo provando. E foi o que fizemos, sem aviso e acompanhados por quem melhor sabe: os chefs Vítor Adão (Plano e Planto) e Zé Paulo Rocha (O Velho Eurico), e o nosso crítico gastronómico Alfredo Lacerda. Não houve uma experiência que tivesse valido a pena. Antes pelo contrário.
É para almoçar? Quer comer? Tem fome? Precisa de uma mesa? São dois? Quer jantar? Já espreitou o nosso menu? Eis algumas das muitas perguntas com que somos bombardeados, não importa a hora, quando caminhamos, por exemplo, pela zona da Baixa. Não interessa que não se olhe, que se ignore ou até que se responda negativamente. “Já comeu? Pode sempre comer outra vez.” Vale tudo para conseguir convencer mais alguém a sentar. E há sempre alguém. Basta olhar para as esplanadas, cheias de gente, poucos ou nenhuns portugueses. Não é diferente em determinadas zonas do Bairro Alto, do Castelo ou de Alfama. O que, à partida, é evidente para uns, para outros é tão somente very typical. Mesmo que nas colunas do Café Gelo, histórico no Rossio que do passado já só guarda o nome, passe reggaeton em bom som e que no menu se destaquem paellas. Ou que, logo abaixo, no Café Nicola, inaugurado em 1929, se venda tanto francesinhas como mariscadas ou até um pequeno-almoço inglês, aqui nomeado de “Brunch Bocage”.
A Rua das Portas de Santo Antão, que desemboca no Rossio, é talvez um dos melhores exemplos desta vaga de restaurantes de qualidade duvidosa – ironicamente, é também aqui que fica um dos mais queridos e importantes restaurantes de Lisboa, o Gambrinus, bem como o Solar dos Presuntos. Porém, em pouco mais de 500 metros, são, pelo menos, sete os restaurantes que se vendem como “tradicional português” ou “artesanal português” e que ora têm sardinhas assadas, independentemente da época do ano, ora têm cataplanas, ora têm mistas de carne ou de peixe (sempre com camarão), ora têm pizzas. Em quase todos, o menu é idêntico, senão igual. Promovem-se com idênticas fotografias de travessas, preços (aparentemente) normais e nomes visivelmente disfarçados.
É a meio da rua, num restaurante concorrido, que nos sentamos com Vítor Adão, transmontano sem papas na língua. Num dia quente, em menos de nada, oferecem-nos uma sombra fresca e “boa comida portuguesa”. Há um vaivém de empregados à mesa. “Já sabem o que vão querer?”, perguntam-nos num ritmo que não permite muitas conversas e ainda sem nos entregarem o menu em mãos. “Temos a mista de peixe com camarão com desconto ao almoço. Em vez de 49,80€ fica por 39,80€”, sugere o empregado, português, apontando para a fotografia da mesma, exposta em diferentes sítios. Adão resolve: “Deixe lá ver a carta e já vemos”. “Ui, isto tem pratos que nunca mais acaba”, atira, não tendo sequer visto metade das páginas – são muitas também porque contém traduções para diferentes idiomas.
Entre a desconfiança de Adão, por saber da impossibilidade que é manter um menu tão vasto, optamos por pedir recomendações da casa. Qual é a especialidade, perguntamos. “Tudo é especialidade”, respondem sem qualquer hesitação. “O leitão é fresco?”, questiona Vítor Adão. “Veio hoje de Negrais”, asseguram do lado de lá. A pergunta do chef do Plano, restaurante de fine dining na Graça, não surge por acaso. Em cima do toldo do restaurante, há uma fotografia de um leitão e o anúncio clássico de quando se tem alguma coisa que sobressai de tudo o resto: “Temos leitão”. Venha de lá uma dose (14,80€), então, e ainda uma de arroz de marisco (14,80€) – há uma opção que junta lagosta ao arroz (38€) – e um robalo (14,80€). “E não querem uns pastéis de bacalhau? Olhem que são muito bons.” Concedemos, mas dos dois que vieram para a mesa apenas um (1,90€) foi comido. Não ajudou que viessem embebidos em óleo, embora fosse mais do que isso: “Eu sou da terra dos bolinhos, está tudo errado nisto. Horrível. Batata não tem e bacalhau também não”.
Curiosamente, não se sentem os mesmos pruridos nas mesas ao lado. Não há excitação, mas também não parece haver desânimo. Já online, assim se encontre o restaurante, as críticas multiplicam-se. Estamos naquele que durante anos se chamou Torremolinos e que ainda hoje no Tripadvisor se mantém como um dos piores de Lisboa (em 4497 estabelecimentos, está na posição 4493). Hoje, é difícil adivinhar o nome – nem mesmo os empregados respondem da mesma forma. “Typical portuguese”, diz aquele que não fala português; “Santo Antão”, garante o português que nos tem atendido e que ali trabalha há 13 anos, apesar de não querer dar grande conversa sobre nada. Quanto menos explicações, melhor. Curiosamente, os dois nomes aparecem no Google, ambos com péssima classificação, mas é preciso elaborar a pesquisa, não basta escrever “Santo Antão”, muito menos “Typical portuguese”. Um utilizador do Tripadvisor, por exemplo, escreve que “para a Baixa de Lisboa [os preços] são até convidativos. A comida é razoável. A ementa apresentada não tem bebidas e os preços facturados são dignos de restaurante de luxo”. Outro, critica a “comida horrível, atendimento horrível”. “Sugerem fotos no cardápio cujo preço não corresponde ao valor cobrado ao pagar a conta”, acrescenta. E assim sucessivamente nas diferentes plataformas.
“Acho que o serviço é mau, é mesmo para turista, embora eu não ache nenhum mal quando é assumidamente para turista, mas aqui a abordagem é má, o sítio é medonho”, resume Adão. Não há nada que chegue à mesa que o chef não cheire e prove a seguir, nem o azeite escapou ao teste. Antes de temperar uma salada sem graça, Vítor Adão pinga azeite para a mão e prova. Torce o nariz, não acreditando que aquelas garrafas estejam virgens, o mais provável é que tenham sido enchidas na casa com algum outro azeite mais fraco. Com os três pratos em cima da mesa, é o arroz de marisco que se evidencia pela negativa. Da cor bem avermelhada aos mexilhões com as cascas partidas, há muito a dizer: “É arroz de caldo Knorr com dois mexilhões e amêijoa vietnamita. O pessoal diz que tem camarão para valorizar algo, mas o camarão não é uma coisa cara. Além disso, o arroz já estava aberto, até o tacho vem completamente sujo”.
Sobre o peixe, não reza a história. “É um desgraçado de viveiro com uma batata horrível. Não foi lavada, ainda está com grelos”, atira o chef. “Para mim, dos três pratos, o leitão é o que está melhor, mas é estranho porque é que eles metem molho em cima da pele. Ou estão a tentar disfarçar alguma coisa, ou são só parvos”, ironiza Adão, ressalvando a importância de se saber trabalhar o produto. Não basta mandar vir o leitão de Negrais, como anunciado, é preciso saber preservá-lo e servi-lo. “Estas peles demonstram que estiveram muito tempo viradas para baixo em molho”, exemplifica.
Conforme os pratos se mantêm praticamente intactos, parece aumentar a desconfiança de quem nos serve. Se servir portugueses já não é habitual, portugueses curiosos com a cozinha e o restaurante ainda menos. A própria tentativa de encetar conversa em diferentes momentos também levanta suspeitas, mas nem por isso há recuo do restaurante. Numa bandeja, apresentam-nos as sobremesas. Um leite-creme com uma cobertura já em água, umas mousses e arroz-doce. É este último que nos recomendam. O tom amarelado levanta dúvidas, afinal só com uma quantidade generosa de ovos caseiros se conseguiria tal proeza e este não parece restaurante que faça isso. Perguntamos. “É dos ovos”, afiançam, enquanto esperam que provemos à sua frente. “É muito doce”, respondemos timidamente. “Tem Boca Doce [pudim instantâneo]”, avança Adão. “É para dar sabor. Não desgosto, faz-me lembrar a minha infância, mas sei que tecnicamente não está bem”, confessa, sem esconder a desilusão por encontrar restaurantes assim. Por fim, a conta não vem inflacionada, como tantas críticas online apontam, mas não se pode ignorar toda a desconfiança e o facto de terem lido o nome no cartão no momento do pagamento.
Se é verdade que nem toda a gente valoriza o momento da refeição, é igualmente verdade que este tipo de restauração pode também afectar quem se esforça por fazer tudo bem, com brio e conhecimento. “Indirectamente, é claro que estes restaurantes prejudicam. Directamente não porque este não é o tipo de cliente nem do Plano, nem do Planto”, defende Vítor Adão. No primeiro, o chef serve dois menus de degustação (75€/seis momentos ou 95€/nove momentos), enquanto no segundo, no Cais do Sodré, apresenta-se numa versão mais descontraída, com uma carta onde brunch e petiscos combinam. “O cliente do Plano é um cliente que sabe aonde vai, o que vai comer, como é que vai comer, quem sou eu. Acontece muita gente que vai ao Plano não saber o que é, ver o menu, começar a falar e ir embora. Eu se calhar até prefiro”, diz.
Zé Paulo Rocha, do restaurante-fenómeno O Velho Eurico, não pensa de forma diferente. “Uma coisa que me dá alguma paz, hoje em dia, é saber que quem vem a este tipo de restaurantes é malta que não é informada nem está interessada. Quem quer realmente conhecer a nossa gastronomia e boa comida sabe aonde ir. O pessoal interessado faz quilómetros para comer”, acredita. “Eu tenho pessoal que chega ao Eurico e que, quando eu digo que só temos mesa dali a meia hora, 40 minutos, respondem que vão a outro lado. Então, vão. Eu gosto, acaba por ser uma triagem”, continua.
É com ele que caminhamos pela Rua Augusta, invadida por esplanadas de várias cores e feitios. Restaurantes tradicionais que vendem paellas, italianos que vendem bacalhau… É no Cozinha d’Avó Celeste que acabamos por nos sentar. Somos sinalizados, assim que paramos a olhar para o espaço. No interior, uma decoração rústica desconexa, no exterior uma esplanada em festa, talvez a propósito dos Santos Populares. Em grande, a promessa de uma “experiência única de sabores” com o celebrizado, mas não tradicional, pastel de bacalhau com queijo da serra – e não, não é esta a casa que criou tal combinação, mas, ao que parece, a escola está feita.
Tão simples que é fácil errar
Ao contrário do restaurante em que nos sentámos nas Portas de Santo Antão e de grande parte na Rua Augusta, a carta deste Cozinha d’Avó Celeste é curta. Pouco mais de meia dúzia de pratos, sendo o bacalhau a especialidade. Há com natas (12,90€), à Brás (12,90), à minhota (14,90€) e em paella (14,90€). Não fosse Zé Paulo o rei do bacalhau à Brás, prato que até foi ensinar na última edição do Masterchef Portugal, e talvez nos tivéssemos aventurado noutras iguarias, mas foi por aí que quisemos avançar. Não sem antes provar o pastel de bacalhau, com e sem queijo (5€), até porque na carta surge como “o melhor”. “Nós temos dois packs, que compensam mais. Um com uma cerveja pequena (6,45€) e outro com vinho do Porto (8,95€)”, sugere-nos um empregado. Passamos o cálice e escolhemos a cerveja, mais pequena que uma lambreta. Quanto aos pastéis, “sabem a batata, é muito mau”, resume Zé Paulo. O que leva queijo da serra, no interior, não é sequer devorado até ao fim.
Se n’O Velho Eurico o bacalhau à Brás se destacou de tal forma que Zé Paulo se viu obrigado a tirá-lo da carta ao fim de quatro anos, pelo menos por um tempo, para não se cansar, neste Cozinha d’Avó Celeste não há nada que convença no prato. “Tem pouco bacalhau, foi demolhado várias vezes”, avalia. “Isto é só boa batata, o ovo cozinhado no ponto e bom bacalhau. É tão simples que é muito fácil errar”, acrescenta, concluindo que são mais as vezes em que isto acontece do que o contrário. E lamenta que muitos dos que se sentam nestes restaurantes levem esta ideia da gastronomia nacional. “Há uns tempos fui à Roménia e comi super mal, mas isso não quer dizer que a gastronomia lá seja má. Eu tenho muito medo quando oiço falar... Por exemplo, às vezes, chegam ao Velho Eurico e dizem que já comeram bacalhau à Brás. Eu pergunto onde. Se calhar têm de comer outra vez. E o pessoal já vai levar essa mensagem de volta”, admite.
O turismo, ou mesmo o excesso de turismo, não lhe é estranho. As filas à porta d’O Velho Eurico, que Zé Paulo abriu em 2019 com Fábio Algarvio, no lugar de uma antiga tasca, mantendo-lhe o aspecto, falam por si. Isso e a dificuldade hoje em marcar mesa – às vezes é preciso esperar semanas, meses se estivermos a falar de jantar ao fim-de-semana. “O turismo veio primeiro. Quando abrimos, eu e o Fábio estávamos a remodelar o espaço, a partir o chão, a pintar paredes, e tínhamos turistas a perguntar se estávamos abertos”, relembra. A localização, a caminho do Castelo, ajuda. Mas é pela comida e o ambiente que a palavra vai passando. Ainda assim, faz-se o esforço para que os locais não percam o seu lugar, especialmente os clientes de sempre. “Não quero que digam que estamos agarrados ao turismo, de todo.” Mas lembra quando no início fazia “exactamente a mesma comida, com o mesmo esforço, e fazia 100€ ao almoço”.
A dificuldade, garante, é manter a consistência e, mais do que isso, o ambiente que tanto caracteriza o restaurante, uma espécie de taberna punk, sem regras, onde podemos acabar a cantar entre desconhecidos e a escrever nas paredes, sempre sem que se perca a qualidade e a criatividade em tudo o que é servido. “Uma cena que me dá uma ganda borra é a expectativa das pessoas. É bué stressante, mas é normal, são coisas que vêm com o sucesso”, admite. “Uma das cenas mais difíceis é que tens de ter aquele ambiente todos os dias. Nós antes estávamos sempre em festa, todos os dias, e não é saudável, mas abrandar também era desenxabido. Não é todos os dias igual, mas mesmo calmo nunca é um serviço normal”, brinca Zé Paulo.
Voltando à mesa, num serviço confuso, que parece nunca saber ao certo o que foi pedido, chegam ainda uns secretos de porco preto (12,90€), aos quais juntamos um arroz de feijão (3,95€), vendido como “o melhor acompanhamento”. “Aí está, outra cena super fácil de fazer… O arroz de feijão está com feijão encarnado e para mim é com feijão manteiga. Faltam coentros, falta picante, falta sabor.”
Mesmo assim, as críticas a este restaurante não são tão más. No Tripadvisor, entre os tais 4497 estabelecimentos em Lisboa, o Cozinha d’Avó Celeste surge na posição 2880. Zé Paulo é compassivo: “Nem todos temos a mesma sensibilidade”. “O meu problema maior é passarmos isto para quem nos visita”, repete com a esperança de que este seja um problema com data de validade. “Cada vez há mais pessoas informadas. Acredito que vão começar a perceber que não há nada muito fixe aqui. Se calhar daqui a dez anos, já não há nada disto”, explica. “Essas pessoas informadas vão a bons sítios, isto começa a ficar vazio e fecha, e depois vêm gajos com dinheiro e abrem coisas melhores aqui”, antevê.
Miguel Coelho, presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, que abarca os bairros de Alfama, Baixa, Castelo, Chiado, Mouraria e Sé, não está tão confiante. “Temos que reflectir sobre que modelo de desenvolvimento económico queremos aqui para o centro histórico e concretamente para esta zona da Baixa, porque se há alguma lição que podemos extrair da pandemia é que isto entrou em colapso precisamente porque esta oferta está muito virada para o turismo”, defende, numa breve conversa ao telefone com a Time Out. “Quem diria que resistia melhor a tasquinha no interior da Mouraria, que apesar de tudo ainda tinha clientes de pessoas que lá moravam?”
Deixando claro que esta é uma questão que passa “completamente ao lado” da junta, que não tem “nenhum tipo de competência sobre se pode ou não haver restaurantes, ou que tipo de restaurantes podem entrar”, Miguel Coelho aponta o dedo à “lei conhecida como licenciamento zero”. “Acho catastrófica para os centros das cidades. Praticamente qualquer pessoa pode abrir um restaurante”, defende. “Nós temos é que atrair para aqui um público consumidor que seja exigente em relação à oferta que existe e que portanto leve a que também se possa diversificar nesse sentido”, acrescenta, referindo-se à necessidade de conquistar moradores para a zona. “Eu gostava de ver aqui uma maior oferta de serviços, até de serviços públicos, uma loja do Cidadão, porventura até uma universidade, alguns clusters de actividade ligadas ao artesanato de boa qualidade”, exemplifica, admitindo que existe um “excesso de oferta turística” actualmente. “A oferta turística tende a massificar e, tendendo a massificar, por vezes, a qualidade não é a desejável”, reconhece, acusando a Câmara Municipal e o Governo de falta de vontade para mudar o rumo. “O que se vê é uma aposta contínua de investimento no turismo, uma vontade desta autarquia em reverter as limitações ao alojamento local. Não vejo programas de incentivos para jovens se fixarem aqui, para as pessoas que cá moram continuarem aqui.”
Questionado pela Time Out, o gabinete do vereador Diogo Moura, que tem o pelouro Economia e Inovação, informa que, “actualmente, a Câmara Municipal de Lisboa não se pronuncia no âmbito do processo de licenciamento das actividades económicas, de acordo com a legislação em vigor”. “A estratégia para a actividade económica da Câmara Municipal baseia-se numa visão de cidade assente na inovação, na sustentabilidade, na diversidade, na valorização da iniciativa privada e na preservação daquilo que é autenticidade de Lisboa, apoiando e acompanhando a actividade, não só dos sectores consolidados, mas dos sectores definidos como prioritários para o desenvolvimento da cidade”, lê-se numa resposta por escrito.
Duas estrelas
Passeando pela zona do Castelo até às Portas do Sol, e entrando por Alfama, não há sequer um esforço para conquistar portugueses. Entre tuk tuks que se amontoam e avalanches de turistas, é na praça na Rua de São Tomé, onde fica a calçada portuguesa em que Vhils gravou o rosto de Amália Rodrigues, que, com Alfredo Lacerda, decidimos parar. O restaurante chama-se Frei Papinhas, fica num edifício que tinha tudo para ser bonito, todo coberto a azulejos, não estivesse também cheio de fotos de comida e menus. Do outro lado da estrada, na praça, precisamente, fica a esplanada, agradavelmente à sombra. Ao contrário do habitual, o contacto começa da nossa parte. Quando pedimos mesa, perguntam-nos se não queremos ver o menu primeiro, quase como se nos estivessem a desencorajar de sentar. Mantemo-nos firmes e começamos por pedir duas imperiais, para sermos rapidamente corrigidos: “Vocês estão num sítio turístico, aqui não são imperiais, são tulipas”. Mas é assim que os turistas pedem cerveja?, questionamos. “Não, o patrão decidiu assim e o copo é diferente.” Esclarecida a dúvida, seguimos com o pedido: uma salada de polvo (7€) de entrada, um bacalhau à minhota (17€) e uma carne de porco alentejana (15€), como principais.
Escrevesse Alfredo Lacerda a crítica e não faltaria ironia e sarcasmo sobre tudo o que aconteceu à mesa. Se no Tripadvisor o Frei Papinhas é o restaurante número 1543 de 4497, na lista do crítico não seria sequer considerado. “Isto seria um dois [em cinco estrelas] bastante convincente e sabes que para dar dois…” É raríssimo, retorquimos. “Estou a ser benevolente?” A dúvida é legítima. Ora veja-se o resumo de Lacerda: “Tivemos uma salada de polvo já com muito pouca saúde, com fermentação em estado avançado, seca, certamente feita há algum tempo e com mau cheiro. [Veio também] uma salada sem tempero, muito comum nestes sítios que servem turistas e que já estaria pronta a servir na mesa desde cedinho, o pepino parecia uns chips de madeira. Depois quando a gente tenta temperar, é horrível. O azeite... Nós que temos bom azeite, as pessoas vão daqui com uma imagem… Está rançoso, o que significa que ou é um azeite muito antigo, ou é um azeite que não é virgem extra como estava na garrafa. Ou está ao calor e ao sol. Tudo coisas que um estrangeiro dificilmente consegue perceber como a água ser Amanhecer [marca própria do Minipreço]. É o mais barato e mais fraquinho”.
Isto tudo sem ainda termos chegado aos pratos. Mas ei-los: “Bacalhau à minhota sequíssimo. O bacalhau não estaria também nas melhores condições. Aquela cebolada com pimentão e a escorrer, não estava bem. As batatas eram de facto pala-pala, caseiras, alguém esteve a cortá-las, tal como as da carne de porco à alentejana. A carne não estava, nem pouco mais ou menos, caramelizada, frita, estava cozida, mas tinha ali uma marinadazita. Alguém teve a ideia de a pôr em vinho branco. As amêijoas, não recomendava”.
À sobremesa, mais uma resposta inusitada de quem nos serve: “Não temos carta. Só temos bolos. Tiramisù (4,50€), cheesecake (4,50€)…” Doces que também não conquistaram. “Eram sobremesas evidentemente dessas feitas em fábrica, docinhas.”
Contas feitas, poder-se-ia pensar que um resumo assim daria uma estrela, mas Lacerda valoriza o facto de, pelo menos, as batatas dos dois pratos principais serem caseiras. Apenas isso. No final, sem vinho (e havia garrafas com preços quatro vezes acima do seu valor), a conta dá 35€ por pessoa. “Um gamanço”, diz o crítico. “Por mais um bocadinho, vais aqui ao Sem, mesmo ao lado”, acrescenta. “É uma pena, o sítio é maravilhoso.”
Crescer sem regra
“Há uma grande diferença entre Lisboa e, por exemplo, Paris. Paris é uma cidade que sempre conviveu com o turismo. Lisboa não assimila o turismo. Lisboa, há 30 anos, era uma cidade praticamente deserta no centro histórico, e de repente encheu-se de turistas, sem qualquer espécie de conhecimento por parte das pessoas que hoje recebem os turistas nos restaurantes e nas lojas. Portanto, o que aconteceu é o que acontece um bocado com o imobiliário, é que as coisas crescem sem qualquer regra”, defende Marina Tavares Dias.
Serão poucas as pessoas que conhecem Lisboa e os seus hábitos como a escritora e olisipógrafa. Conversa puxa conversa, memória leva a outra memória. Marina conta que, no passado, Lisboa era feita de restaurantes populares e casas de pasto, conhecidos por servirem bem, numa altura em que a Rua Augusta não tinha sequer restaurantes. “Isso é agora. A Rua Augusta era uma rua de comércio, de casas comerciais de prestígio, mas que não tinha nada a ver com restaurantes”, conta. “Para ter um restaurante como deve ser é preciso ter espaço para a cozinha e muitos desses sítios que agora se transformaram em restaurantes eram lojas, e essas lojas não tinham espaço para ter cozinha”, aponta, defendendo que, “quando existe um excesso de turismo, perde-se a noção do agradar ao cliente”. “A casa está sempre cheia. Hoje são uns, amanhã são outros. Quando a tradição nas casas boas era fidelizar a clientela”, afirma. “Eu digo sempre que aquilo que são estabelecimentos são coisas que não são para sempre. De uma maneira ou de outra, são provisórias. E nós lutamos muito para que as lojas históricas não sejam provisórias, mas a maioria das lojas é provisória, portanto podemos sempre alterar para melhor”, defende. E conclui: “A questão é se há alguém capaz de tomar conta de um restaurante que hoje serve uma comida que não presta, feita à pressa por causa dos turistas, reformulá-lo e fazer um restaurante bom. Isso é que não acontece.”
Artigo publicado originalmente na edição de Verão da Time Out Lisboa
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