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BD em Portugal: “Há uma comunidade e um carinho, já não é deprimente”

O sucesso de ‘Balada para Sophie’, de Filipe Melo e Juan Cavia, galgou fronteiras e pode vir a ser adaptado para televisão nos EUA. É um acaso, ou resulta de um mercado português de BD cada vez mais forte? Fomos à procura de respostas.

Raquel Dias da Silva
Jornalista, Time Out Lisboa
Filipe Melo e Juan Cavia
© Francisco Romão Pereira / Time OutFilipe Melo e Juan Cavia na exposição 'Balada para Sophie', no Amadora BD 2022
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A primeira história de arte sequencial conhecida em Portugal data de 1744. Estamos a falar, espante-se, do “Padrão do Senhor Roubado”, que nos conta, em apenas 12 painéis de azulejos, o afamado roubo da Igreja Matriz de Odivelas, que veio a dar nome à estação de metro lisboeta. Quanto às primeiras bandas desenhadas só surgiram mais de um século depois, com a publicação em jornais de tiras satíricas de duas vinhetas ou pouco mais, a que se seguiu, em 1872, o primeiro álbum ilustrado do alfacinha Raphael Bordallo Pinheiro, considerado um dos pioneiros da BD portuguesa. Desde então muita tinta correu, inclusive em inúmeras revistas, como a notável ABC-zinho (1921-1932) e a mítica O Mosquito (1936-1986), ainda hoje nomeadas com nostalgia por fãs veteranos, que aí acompanharam a estreia de nomes como José Garcês e se viciaram em séries como Jim del Monaco, de Tozé Simões e Luís Louro. Mas depois veio um período de crise, e o mercado foi minguando até se tornar uma coisa de nicho. Estará isso a mudar – agora que os super-heróis dos quadradinhos são fenómenos globais, que a manga e a manhwa fazem cada vez mais sucesso entre as novas gerações, e que até uma novela gráfica com argumento português vende direitos para uma série televisiva –, ou estará a banda desenhada condenada a fazer pouco mais do que persistir?

Quando nos encontrámos na última edição do Festival de Banda Desenhada da Amadora, o maior certame do género no país, Filipe Melo e Juan Cavia mostraram-se, mais do que esperançosos, confiantes. Talvez porque, pouco mais que dois anos após a sua primeira edição, pela Tinta-da-China, a premiada Balada para Sophie, agora publicada pela Companhia das Letras, não só continua a vender mais do que qualquer novo título de BD portuguesa, como poderá vir a chegar ao pequeno ecrã, pela Universal Internacional Studios, à conta da edição norte-americana da Top Shelf Productions. Não há dúvidas: o argumentista português e o desenhador argentino são autênticas estrelas pop neste meio. O que pode isso significar para o resto do mercado é a grande questão. A verdade é que eles não se sentem sozinhos. “Estamos nisto há mais de dez anos – eventos como este levam-nos a fazer um balanço –, e temos tido oportunidade de ver jovens artistas que conhecemos mais novos e agora são editados e fazem parte de uma cena da banda desenhada portuguesa, que era algo que nunca imaginei que existiria. Quando começámos, os nossos leitores ou eram mais velhos ou não eram leitores assíduos de BD, e isso tem mudado graças a uma série de novos autores, que têm atraído uma nova geração, e de editoras [especializadas], como A Seita, que têm feito um óptimo trabalho. Há uma comunidade e um carinho, já não é deprimente”, afiança Filipe, que se estreou em 2010, com o primeiro de quatro volumes de As Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy, e não tenciona parar de escrever tão cedo.

O argentino Juan Cavia, que trabalha com o português desde o início, não só nota a referida mudança no panorama nacional – com vários nomes a não perder, como Joana Afonso, frequentemente reconhecida como um dos maiores talentos da BD nacional –, como a uma escala global. “A novela gráfica está a ganhar mais espaço”, assegurou. “Em Espanha, na Argentina, em muitos outros países, também se fala numa expansão da [venda de] banda desenhada. E há cada vez mais adaptações ao cinema e à televisão, com séries como Umbrella Academy, Sandman, Paper Girls, que incentivam à descoberta do material original.”

Amaia Iglesias, uma das responsáveis pela Iguana, a chancela da Penguin Random House dedicada a BD e álbuns ilustrados, não poderia concordar mais. Uma “proporção não negligenciável”, como lhe chamou a consultora Gfk, do aumento das vendas globais no mercado livreiro em 2021 deveu-se ao boom da BD, atingindo picos também em Portugal (+72,7%). “O fenómeno da manga é avassalador. Deixou-nos a todos impressionados, e talvez tenha influenciado o crescente interesse noutros géneros gráficos”, sugere ao telefone Amaia, que já tinha editado álbuns ilustrados na Suma de Letras, como os da espanhola Maria Hesse e os das portuguesas Filipa Beleza e Raquel Sem Interesse. “Há outras chancelas da Penguin, como a Alfaguara e a Cavalo de Ferro, a publicar BD e novelas gráficas para adultos, porque há de facto uma maior apetência do público em geral e faz todo o sentido para nós aproveitarmos essa onda para lançar um novo projecto editorial.” Para este ano, está confirmada a edição, por exemplo, de Quando Soube Que Era Gay (The Times I Knew I Was Gay, no original), de Eleanor Crewes, que está previsto sair a 12 de Junho; assim como a aposta em autores portugueses, como Mosi, que também entrará no catálogo, por volta de Outubro.

É muito amor, sangue, suor e lágrima

Curiosamente, à excepção de Nem todos os cactos têm picos e O Outro Lado de Z, editados pela Polvo e a Kingpin Books respectivamente, a maior parte dos trabalhos de Mosi – nome artístico de Joana Simão, uma das portuguesas convidadas para a exposição “4 Quartos (e são nossos!)”, que foi destacada no Amadora BD em 2022 e estará no Lyon BD, em França, em Junho – é edição de autor, com pouca tiragem, que esgota rápido. “Todos me dizem ‘produzes muito’ e é verdade, mas só porque não tenho filhos nem um trabalho das 9 às 5. Durante muito tempo, nem sequer pagava renda, porque vivia com os meus pais. Esse privilégio permitiu-me continuar a fazer BD, mas a banda desenhada portuguesa continua a ser um micro-nicho”, lamenta, embora se sinta optimista. “Posso ter um discurso mais crítico, mas vejo a mudança a acontecer.” Com vários títulos e prémios no palmarés, Joana Afonso  que em 2022 publicou O Bestiário da Isa com A Seita e está a trabalhar numa adaptação de O Auto da Barca do Inferno para a colecção Clássicos da Literatura em BD da Levoir  não é tão crente. Não só continua a ser raro grandes editoras, com maior distribuição e alcance, publicarem autores portugueses, como fazer BD ainda não paga contas e a divulgação deixa a desejar. “Quase se espera que, por obra e graça do Espírito Santo, os livros caiam no colo das pessoas”, diz a artista, antes de elogiar o trabalho de Paulo Monteiro, director do Festival de BD de Beja, onde poderá vir a nascer o primeiro museu de banda desenhada do país. “É louvável a forma como promove os autores nacionais.”

Luís Louro – sim, o desenhista de Jim del Monaco, que continua a ser um dos autores mais prolíficos da actualidade – também assume as deficiências do mercado português, mas diz-se acarinhado. “Como um dos autores mais vendidos dos últimos 30 anos, seria extremamente cínico e ingrato se me dissesse triste com o mercado. Já houve melhores épocas. Mas também não havia tanta oferta nem redes sociais. E, se um de nós conseguir abrir uma porta, em vez de ficarmos invejosos, devemos agradecer e tentar aproveitar também. Não devemos pensar pequenino.” O aviso é deixado juntamente com uma sugestão: criar a pensar “nos temas que interessam” às gerações de hoje.

Há, claro, mais a fazer para continuar a alavancar o mercado. O editor José Hartvig de Freitas e o crítico, livreiro e argumentista de BD João Miguel Lameiras, co-fundadores da cooperativa A Seita, reconhecem desde logo o papel dos festivais, onde os autores “namoram” o público, e de colecções como a Novela Gráfica do Público e os Clássicos da Literatura em Banda desenhada da RTP com a Levoir. Mas não hesitam em chamar a atenção para a escassez de apoios e o “problema” do Programa de Bolsas de Criação Literária da Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, que implica aos selecionados renunciar a qualquer outra actividade profissional, o que quase nunca é viável. Mário Freitas, da Kingpin Books, remata: “Num país – num mundo, diria – em que pouco se lê, a introdução da BD nas escolas seria fundamental.”

Notícia actualizada, originalmente publicada na edição de Inverno da revista trimestral Time Out Lisboa.

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