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No início era o verbo. Depois, a dúvida, o conflito e o sacrifício. Por fim, a revelação. C., Celeste e a Primeira Virtude não é um texto canónico, não é sequer um clássico – é um original contemporâneo, feito aqui e agora por Beatriz Batarda –, mas percorre essa mesma via dolorosa para encontrar a verdade. Uma nova verdade, talvez. Um novo verbo ainda por imaginar. A peça, que se estreia dia 11 e fica em cena até 22 de Abril no São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa, é a história de uma professora – perdão, mestra – e de uma turma de alunos de teatro em constante tensão, presos numa teia de mal-entendidos. No caso, sobre o que são e como se posicionam arte, amor, liberdade, virtude (as que restam…) e medo.
“O que me interessava neste espectáculo era trabalhar na zona do equívoco. Os vários equívocos que se vão gerando entre as pessoas, entre aquilo que são as leituras dos acontecimentos e aquilo que a pessoa fixa e guarda na sua memória, no seu corpo. Nós que vivemos os acontecimentos sentimo-los de uma determinada maneira e quem vê de fora não estará à mesma escala. Nós com as palavras vamos acertando a escala das coisas. Tentamos racionalizar o que aconteceu ao nosso corpo com aquilo que foi a leitura do exterior, para poder acertar a medida das coisas”, afirma Beatriz Batarda em conversa com a Time Out, na escola de dança UDance, em Santos, onde decorreram os ensaios.
Além de assinar o texto (com apoio à dramaturgia de Nuno M Cardoso), Batarda interpreta a mestra e dirige, na realidade e na ficção, os sete jovens actores e actrizes baptizados, na peça, com nomes de virtudes: Excelência, Sensibilidade, Honestidade, Respeito, Verdade, Fé e Justiça. Rita Cabaço faz esta última, sendo uma excepção à forma como o elenco foi seleccionado. Binete Undonque, Guilherme Félix, Hugo Narciso, Íris Runa, Joana Pialgata e Pedro Russo chegam a C., Celeste e a Primeira Virtude a partir de cinco laboratórios que Beatriz Batarda promoveu ao longo de dois anos com antigos alunos de teatro (“mas também da música”) acabados de formar. “São pessoas que estão ali num sítio em que já acabaram a formação mas ainda não foram reconhecidas. O mundo não sabe que elas existem.” Participaram 43, foram escolhidos seis – os demais e os respectivos processos desses laboratórios vamos poder conhecer na vídeo-instalação Corpos Celestes, em cinco actos, que vai estar montada na Sala Bernardo Sassetti enquanto a peça estiver em cena.
Com Rita Cabaço, foi diferente. O papel foi escrito com ela em mente. “Assim que comecei a construir a escrita já sabia que era a Rita”, adianta Batarda. Além do mais, “a personagem exigia uma experiência de palco um bocadinho maior do que as restantes. Pareceu-me um bocadinho arriscado pôr em cima de um actor menos experiente uma personagem com a dimensão da Justiça”. “Ela fez com os outros todos os laboratórios e construiu comigo a história que se vai revelando, da Celeste”, conta. Mas não queremos entrar por aí. Como se diz? No spoilers. Fiquemo-nos pelo mais importante: o confronto entre gerações sobre o qual Beatriz Batarda nos quer a reflectir. Não entre a sua geração e a dos alunos. É entre o presente e “o passado todo”. “Porque esta professora é uma espécie de perpetuação de uma história”, que se opõe à disrupção, que incita mas molda, que desdenha e violenta até. Para avançar, os jovens aprendizes têm de lhe fazer frente. Mas faltam-lhes as ferramentas, a nova língua. “Como eles não estão à altura, se calhar, alguém aqui vai ter que ceder.”
“Isto é uma espécie de balanço do meu percurso enquanto professora”, observa Beatriz Batarda, que aqui põe em causa um sistema de ensino “assente sobre a memória, sobre o exercício da memória, e não sobre o exercício do pensamento”. “Fomos abdicando de outro tipo de inteligências, mais instintivas, mais criativas, mais próximas daquilo que será o pensamento da invenção”, diz. “Nós não precisamos de praticar a memória, a não ser que seja pelo músculo. Para isso existe a tecnologia.” A mestra funciona como uma alegoria para a “geração do conhecimento”, que é preciso sacrificar “na esperança de que estas virtudes consigam reinventar a verdade, criar uma língua própria”. A mudança do mundo depende disso. A relação com a natureza, com o clima, entre os homens e com as outras espécies. As respostas ao machismo, ao racismo, ao fascismo, que vêm de trás enlamear o presente e o futuro – e exigem uma revolução e uma autópsia ao que vier a soçobrar.
“Há claramente um confronto. Eu vivo isso, todos nós estamos a viver isso. Esse confronto de uma necessidade de uma transformação em que a língua que me serviu a mim já não serve a geração que vem a seguir”, continua a encenadora. “Só que a geração que vem a seguir – e a mudança depende dessa geração – quer fazer essa mudança mas ainda não está definida a língua que eles querem falar. E portanto não têm recursos e não são levados a sério. Ainda não estão a digladiar-se titanicamente com o conhecimento antigo, que são séculos e séculos de construção, de civilização clássica, se estivermos a falar do lado colonialista da civilização clássica branca.” Como às tantas refere a mestra, “ter um cabelo com personalidade não será suficiente. É preciso ganhar calo”. Os alunos contestam, mas sem conseguirem contrariar o que a tutora lhes vem dizendo: a beleza não chega, é preciso pôr comida na mesa. “O vosso sonho é bonito e comove-me a inocência dessa ideia.”
É bom, contudo, não confundir a voz da mestra com a de Beatriz Batarda. “A mestra não é a minha voz pessoal. A minha voz pessoal são eles todos. Eu não sou movida por uma só verdade. Tenho todos estes conflitos dentro de mim, sobre o que transmito, o que não transmito, como transmito. Na verdade, a peça transpira todas essas contradições que vivo dentro de mim enquanto artista e enquanto professora”, afirma. “Com a pandemia muitas destas questões ganharam uma dimensão muito mais gritante. Todas as questões sobre o lugar da liberdade na arte. E mesmo o inverso: o lugar da arte na construção para a liberdade. Esta politização da arte. Se o activismo se serve da arte para fazer activismo. Ou se a política se serve da arte para fazer propaganda. Ou dos artistas que se deixam utilizar pela política para poderem ter dinheiro para fazerem o seu trabalho. Há todas estas questões a acontecerem que são ramificações e que se afastam cada vez mais do lugar da liberdade dentro da arte, que está em perigo. Acresce a isso este constante dilema entre estes jovens conseguirem ser inventivos e verdadeiramente originais, sabendo perfeitamente que para poderem sobreviver no mercado de trabalho da área deles vão ter que corresponder a uma série de expectativas para poderem existir, para poder vender.”
São Luiz Teatro Municipal (Lisboa). 11-15 Abr (Ter-Sáb) 19.30. 21 e 22 Abr (Sex e Sáb) 19.30. 12€
* A Time Out Lisboa publica na edição Primavera 2023 uma grande entrevista a Beatriz Batarda, conduzida pela jornalista Joana Moreira. A revista chega às bancas logo a seguir à Páscoa.
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