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Com duas livrarias, biblioteca, pista de dança, sala de projecção e dois bares, a Casa do Comum – Centro Cultural do Bairro Alto (CCBA) é um elogio ao ócio colectivo. Mas talvez seja também o único sonho que José Pinho, o celebrado livreiro que fundou a Ler Devagar e que morreu em Maio deste ano, não realizou. “Ele fez tudo o que queria”, diz Joana Pinho, filha e directora das livrarias, numa visita guiada ao espaço de três pisos, ainda antes da abertura, a 1 de Novembro. E quem cá ficou fez o que ele queria também: montar uma casa para ler, ver um filme, assistir a um concerto, beber um copo e, acima de tudo, contrariar o anti-social que há em nós.
“Quero que este seja o lugar onde as coisas se sabem porque as pessoas estão aqui, umas com as outras, e não porque viram em algum lado. Estamos cada vez mais voltados para dentro, mais isolados… Por isso queríamos muito um espaço onde pudéssemos estar juntos”, partilha Joana. Abrir o CCBA em 2023 é, assim, um “movimento de resistência”. Primeiro, porque vai contra a corrente do isolamento criado pela tecnologia (e reforçado pela pandemia); segundo, porque é um regresso da Ler Devagar ao Bairro Alto (tudo começou a 30 metros deste edifício pombalino, em 1999), numa altura em que o Bairro “é outra coisa”, leia-se, alojamento local, despedidas de solteiro e baldes de caipirinha. Mas é a hipótese de que esta zona da cidade ainda seja para sonhadores como José Pinho – o mentor da Casa do Comum, fundador das livrarias Ler Devagar e do festival literário Folio, que aqui viveu décadas – que faz brilhar os olhos de Joana. E possivelmente os de todos que querem cá voltar.
A casa esteve para abrir em Outubro de 2022, mas a doença oncológica de José Pinho, a necessidade de obras estruturais no edifício e contratempos como as inundações na Ler Devagar da Lx Factory foram atrasando o processo. Ainda assim, só mudou a data. “O José Pinho teria muita pena de não estar aqui. Mas nós estamos, continuamos os projectos sem nunca pensar muito. Ele dizia muitas vezes: ‘Só faz falta quem cá está!’ E ele faz-me muita falta noutras coisas, mas não para levar isto para a frente.”
A festa de abertura da Casa do Comum – no número 285 da Rua da Rosa, antiga morada do Grupo Desportivo e Cultural dos Trabalhadores da Imprensa Nacional – prolonga-se de 1 a 5 de Novembro, com uma programação que será “uma montra da pluralidade de olhares, de pessoas e de gostos que se pretende acolher”. Em jeito de visita guiada, é mais ou menos o que segue abaixo.
Cave: os livros, a taberna e a pista de dança
A cave ainda brilha como glitter. “Tivemos aqui a festa do DocLisboa”, justifica Joana Pinho, na sala onde está instalada a cabine do DJ e onde se espera que aconteçam, com regularidade, performances, sessões de música e outros pretextos para dançar. “Não temos vizinhos de nenhum dos lados, por isso esta é a parte onde podemos fazer mais barulho.”
Escavado na terra de um lado (o das festas) e aberto para a rua do outro (o da livraria-bar), o lugar denuncia um passado de tipografia, a avaliar pelas estruturas de metal no tecto. Passando por baixo, em direcção ao átrio, as luzes baixas e o sofá verde-musgo convidam a sentar, mas a livraria chama do outro lado. “Aqui era o armazém da Adega das Cegonhas [restaurante-vizinho da antiga Ler Devagar], que tinha umas belas iscas ou o chamado bacalhau do bidé [em alusão à demolha]. Era muito interessante, porque as pessoas sentavam-se todas juntas à mesma mesa, em comum”, prossegue Joana.
Ninguém quis anular o ambiente de tasca e, por isso, a livraria de usados – onde há títulos a cinco euros e outros “mágicos” (como estão catalogados) – convive serena com o Cegonha Bar, onde há petiscos, medronho de Marmelete (Serra de Monchique) ou vinhos do Dão (José Pinho era natural de São Pedro do Sul). “Vêm de uma produção artesanal, em que as uvas ainda são pisadas”, com vagar. Também aqui, Joana sonha um dia dispor umas pipas. “A ideia é recriar um ambiente de taberna, de tasca galega, como havia tantas aqui no Bairro Alto.” Embora ainda não cheire a vinho, o ambiente já cá está. Ajudam as clássicas mesas de tampo de mármore e pés de madeira, vindas de outro grande clássico lisboeta, pródigo a juntar pessoas, que fechou portas em 2015: o Palmeira, na Baixa.
Piso intermédio: a livraria e o Museu da Preguiça
É sobre o chão de tábua corrida, onde funcionava o antigo salão de festas dos trabalhadores da Imprensa Nacional, que assentam as estantes da livraria principal da Casa do Comum. Com o foco em literatura e ciências sociais e com uma grande selecção de editoras independentes, a livraria recupera a essência da Ler Devagar original: a de vender livros contra o domínio da novidade, ou seja, apostando nos títulos que se acumulam nos armazéns de editoras e distribuidoras, para que cheguem ao público a preços mais baixos.
Neste lugar, ainda assim, a experiência será diferente da livraria da Lx Factory. É como se estivéssemos a consultar, folhear e descobrir numa casa tradicional lisboeta, de pé direito alto, sem hora de saída (nem para o visitante, nem para a Ler Devagar, que tem um contrato de arrendamento de 25 anos com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa).
Alguns passos ao lado, mas numa divisão mais recolhida (espécie de refúgio), vive o Museu da Preguiça – dito assim mesmo –, cujo grande propósito é “ler na horizontal”, como incita a direcção. É uma sala em que três bibliotecas particulares – a de livros eróticos de José Pinho e as selecções de Roger Claustre e de Liana Marchetti (ambos da Ler Devagar) – dispostas em armários de farmácia antigos, ex-Pensão Amor, passam a ser de todos (sob pedidos de consulta). Mais uma vez, a ideia veio de um sonho antigo de José Pinho, que queria desformatar a nossa relação com os livros fora de casa e dar-lhes outro tempo. No Museu da Preguiça, por isso, as obras existem para serem “descobertas na horizontal”, sobre chaises-longues e sofás.
Último andar: o cinema, os sofás e o piano
Para sair da preguiça, basta subir pouco mais de uma dezena de degraus. No último piso, o antigo ginásio dos trabalhadores da Imprensa Nacional dá lugar à sala de projecção. Dedicada ao cinema como experiência colectiva, este é o espaço “onde passamos à frente do outro para nos sentarmos”, numa fila de cadeiras antigas e desbotadas, mas também onde, inusitadamente, podemos vir a assistir a um ciclo de filmes portugueses a partir de uma poltrona.
A ideia nunca foi criar um cinema formal, convencional, como explica Joana Pinho. “O espaço ainda está em aberto, não sabemos ao certo como vai ficar… Estamos a pensar pôr aqui uns sofás, umas poltronas, umas camas talvez”, descreve a directora. Até o projector é temporário, enquanto não chegam os fundos. Também o piano de cauda da Lx Factory atravessou meia cidade para aqui estar, abrindo possibilidades como filmes musicados ao vivo, mas também concertos e outras formas de pôr a música, o cinema e as pessoas em comum, como se estivessem em casa, mas melhor. Com a faísca deste lugar.
Casa do Comum – Centro Cultural do Bairro Alto. Rua da Rosa, 285. Qua-Dom 12.00-2.00
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