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Bia Maria: “Tenho medo que as pessoas se esqueçam de que existi e do que fiz”

A cantora de Ourém vai apresentar o seu primeiro disco, ‘Qualquer Um Pode Cantar’, no Musicbox, este sábado, 9 de Novembro.

Hugo Geada
Escrito por
Hugo Geada
Jornalista
Bia Maria editou o  seu primeiro disco, Qualquer Um Pode Cantar
DRBia Maria editou o seu primeiro disco, Qualquer Um Pode Cantar
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Todos temos uma voz que merece ser ouvida e oportunidade para nos expressarmos. Quem o diz é a jovem cantora de Ourém, Bia Maria, que adoptou este mote no seu primeiro álbum, Qualquer Um Pode Cantar. Depois de três EPs e muitos singles, a artista estreia-se no formato de longa duração esta sexta-feira, 8, com um registo inspirado no poder e nas capacidades da voz. No sábado, 9, toca no Musicbox.

Quando é que começaste a trabalhar em Qualquer Um Pode Cantar?
Diria que comecei a escrever as canções em 2020, mas só ficaram fechadas no ano passado, que foi quando percebi qual era a ideia que queria imprimir, e que a base deste trabalho seria a voz. É ela que liga o disco todo. Depois foi pôr mãos à obra e perceber que ninguém podia trabalhar nele por mim. Tinha de ser eu a encontrar ferramentas, a aprender a mexer nelas. A gravar coisas e a produzi-lo. 

Já tinhas vários EPs e singles lançados, porque é que só decidiste agora lançar agora o teu primeiro trabalho de longa duração?
Já queria lançar um álbum de longa duração há algum tempo, mas nunca tive as canções certas. Há pessoas que, actualmente, não ligam muito ao formato, que dizem que o álbum está morto e que funcionam bem só a lançar singles. Não há problema em existir quem pense dessa forma, mas eu cresci a ouvir discos e a conseguir conectar-me com eles. Tenho uma grande afinidade pela forma como são capazes de contar uma história e de criar uma ligação com o ouvinte. Por isso, sempre tive o bichinho de querer lançar um álbum. Era um passo importante.

Achas que valeu a pena esta espera?
Sim. Em 2020, tinha um álbum pronto a lançar, mas não estava a conseguir apoios para o financiar. Agora é engraçado pensar nisto, parece que foi uma coisa do destino ou do universo, porque não me sentia propriamente conectada com aquelas canções. Eram bonitas e faziam sentido, só que não havia um elo de ligação entre elas, nem uma identidade que se relacionasse comigo. Fui adiando até que percebi que não era isso que queria. Percebi que tinha de seguir por uma rota diferente. Ia demorar mais tempo, ia precisar de trabalhar mais e ser menos preguiçosa, mas estou feliz com o resultado. Foi recompensador.

Quais foram as maiores dificuldades que sentiste agora, ao fazer um disco de longa duração?
Foi descobrir um conceito e uma estética que fossem ao encontro das minhas ideias. As canções tinham de ter uma sonoridade congruente e um universo muito próprio. Encontrar isso em dez canções é trabalhoso. Tens de passar horas e horas a fazer projectos, a deitar ideias para o lixo e a perceber as canções que funcionam e as que não funcionam até chegares à fórmula que vai vestir todo o álbum. É preciso muito trabalho, muitas horas. E falhar muito, que é algo que às vezes me custa um pouco.

Que universo é esse?
É um disco cuja base é a voz, que surge de muitas formas. Como as colaborações que tive foram todas de coros, estes são apresentados de formas diferentes. Numa das canções, é usado como se fosse um instrumento; noutra tenho as Sopa de Pedra a formar um cânone de vozes, como se fosse só uma pessoa a cantar; na Qualquer Um Pode Cantar temos o coro na sua forma mais tradicional, num refrão massivo e gigante. Portanto, diria que a voz é o elemento mais importante do disco, que foi construído em volta disso. Também foi muito desafiante perceber que este trabalho não ia ser só intimista, só umas guitarrinhas e voz. Precisava de percussão e a forma certa de a usar. Foi muito trabalhoso, mas acabou por definir a natureza do disco.

Quem ouve as músicas rapidamente percebe que a parte lírica também é crucial. Muitas têm uma componente confessional. Era importante mostrar todos estes sentimentos?
Este disco, no fundo, surge de um acumular de várias inquietações. À medida que fui crescendo e ganhando alguma maturidade, as coisas que me preocupam e sobre as quais eu vou reflectindo vão-se alterando. Como a minha forma de expressão natural é a escrita, mais depressa escrevo uma canção sobre qualquer coisa que me irrita do que vou falar com alguém sobre isso. Acho que as canções foram surgindo naturalmente sobre estas temáticas. Só quando o disco ficou finalizado e o estava a ouvir é que consegui perceber que aquilo era uma expressão do meu interior. 

É complicado partilhar estes sentimentos tão profundos e íntimos com o público?
São sentimentos com que outras pessoas se identificam. Por exemplo, quando lancei a Marcha da Paridade houve muitas mulheres a vir mandar-me mensagem porque reconheciam imensas coisas na canção. Este disco até pode ser bastante pessoal, mas as temáticas são tão abrangentes que muitas pessoas acabam por se identificar. Portanto, tenho de aceitar o facto de que vou ter de falar de coisas pessoais, que são do meu mundo, mas que se calhar depois também fazem parte do mundo de outras pessoas, porque acabamos por ter alguma coisa em comum.

Essa ideia de que todos temos algo a dizer e a partilhar também parece estar um bocado associado ao conceito.
No fundo, é um bocado isso. Eu utilizei a expressão cantar porque a voz é muito importante. Mas qualquer um pode criar e expressar as suas emoções. Devia ser um dado adquirido para todos nós. 

Trabalhas como professora, tanto de crianças como de adultos. Isso ajudou-te a perceber que qualquer um pode cantar?
Claro que sim. Tanto o trabalho como professora, como aquele desenvolvido em comunidade. Dou aulas em escolas com muitas crianças, mas também a um coro com pessoas com mais de 40 anos. Estar com eles todas as semanas a cantar é importante para me manter com os pés assentes na terra e a ter muita humildade. Às vezes, a vida artística é muito individualista e egocêntrica. Há uma linha muito pequena que, se ultrapassarmos, pode fazer com que achemos que somos muito bons e superiores. Que estamos num pedestal. Isto é reflectido na Qualquer Um Pode Cantar quando digo: “Nós não somos santos, nem sequer existe altar”. O mal do mundo é não percebermos que estamos todos ao mesmo nível. Dar aulas, sobretudo a crianças, faz-me ter esta perspectiva humilde e aberta para o mundo.

Os teus alunos são uma fonte de inspiração?
Gosto de os tratar como iguais. Às vezes estou a falar com eles, canto-lhes qualquer coisa nova ou proponho-lhes ideias. Estou sempre aberta a que me dêem também o feedback deles e me falem sobre as suas perspectivas. Têm muita coisa a acrescentar e acho importante ouvi-los. 

Como é que o Tiago Pereira, criador de A Música Portuguesa a Gostar Dela Própria, aparece na “Qualquer Um Pode Cantar”?
O discurso do Tiago surge a meio da canção e resume todas as ideias que foram apresentadas. Sou apaixonada pelo trabalho dele desde que o conheci. É uma pessoa muito atenta ao mundo à nossa volta e ao nosso país. Já percorreu muitos quilómetros e já conheceu muitas pessoas. Tem uma paixão pela arte na sua forma mais pura, sincera e humilde. Quando estava a fechar esta canção deparei-me com este discurso do Tiago no YouTube. Fez-me sentido incluí-lo na música.

Acho muito interessantes, neste disco e ao longo da tua discografia, as canções sobre objectos. Por exemplo, a “Roupa Velha” e a “Lenço de Papel”. O que te leva a fazê-las?
Nunca tinha pensado nisso. Achava que ias falar sobre as canções com nomes, como a do Roberto e, agora, “Para o Joaquim”. Diria que isso acontece porque sou uma pessoa muito visual e, de alguma forma, os objectos ficam muito presentes na minha memória. Quando uma estou a passar por uma situação, costumo memorizar o que é que as pessoas tinham vestido ou o que é que eu tinha vestido ou como era o espaço onde eu estava. Detalhes como as mesas, o chão, se estava sol ou não, a cor das paredes. Quando começo a escrever, tento agarrar-me a esses pormenores, que muitas vezes acabam por ganhar um significado mais metafórico.

Não paro de pensar nos últimos versos do disco: “Se acordar hoje tarde e não houver quem guarde as minhas cantigas / Deixo a voz numa campa e morro com ela sem ter quem a limpe”. É um final triste ou esperançoso?
Também não sei bem. Essa canção chama-se Afonia, e faz parte de uma trilogia no álbum que inclui a Micro Nódulos e a Nódulos. São três faixas sobre condições que provocam o deteriorar da voz. Isto acontece quando não temos cuidado. Se não tiver hábitos saudáveis, ela começa a falhar. Tudo começa com os micro nódulos nas cordas vocais, depois vêm os nódulos e por fim a afonia. Não consegues usar a voz para nada. Já passei por isso e é uma frustração gigante. Esses versos são o reflexo da vontade de que a minha arte continue a sobreviver através de outras pessoas.

É importante que a tua arte ressoe desta forma com as pessoas?
Mesmo que não esteja a escrever para outras pessoas, a minha arte vai ser partilhada. Apesar de às vezes ser muito individualista, tenho de contar com os outros. Gosto de estar sozinha, mas há certos momentos em que fico com medo de ficar assim para sempre. Tenho medo que as pessoas se esqueçam de que existi e do que fiz. É dai que surgem esses versos. Da ânsia de não existir ninguém que guarde as minhas cantigas e que as partilhe de geração em geração. Que as esqueçam.

Musicbox (Lisboa). 9 Nov (Sáb). 22.00. 9€

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