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O Inverno foi a desculpa perfeita para os donos da Casa Reîa, na Costa da Caparica, tirarem os olhos do mar. O resultado está à vista no número 31 da Calçada Ribeiro Santos. No Black Trumpet, os holofotes viram-se todos para os cogumelos, que brotam até em cocktails de autor, como o black trumpet mezcalita, infundido com trompeta-negra, a espécie que dá nome à casa. “Toda a gente gosta de cogumelos. Quem não gosta é porque ainda não comeu da maneira certa”, diz-nos Sacha Gielbaum, que quer fazer do novo restaurante um espaço de inovação culinária com programação cultural. Além de noites de música ao vivo, estão previstos vários eventos em torno do fascinante reino Fungi, como workshops com especialistas, provas especiais, passeios micológicos e sessões de cinema.
Trata-se de um sonho antigo. Ainda o clube de praia na Cabana do Pescador estava para nascer e já Sacha andava a pensar em abrir um espaço em Santos que pudesse acrescentar à vida de bairro. “Estamos apaixonados, especialmente pela igreja [de Santos-o-Velho]. Adoramos o ambiente familiar e a vizinhança. Todos os dias passávamos por aqui e pensávamos: ‘Uau, é o local perfeito’”, confessa o francês, que nos faz a visita guiada ao espaço, juntamente com a sua companheira, Melody Sanderson. “Andei a namorar o edifício durante anos. Isto chegou a ser o Lulu [um Pub Bonito], muito cor-de-rosa.” Por isso é que, quando a oportunidade se apresentou, nem o francês nem o seu sócio, Emil Stefkov, hesitaram em juntar os parceiros certos para fazer acontecer, Juliana Cavalcanti incluída. A designer de interiores assina o desenho do espaço, “art déco com estilo francês”, em tons terra e com texturas em madeira.
“Como a Casa Reîa é um projecto muito sazonal, é muito difícil, a cada estação, ter de dispensar pessoal com o qual temos uma grande ligação e que, depois, é contratado e não conseguimos recuperar. Por isso, por um lado, também queríamos construir um ecossistema que nos permitisse criar uma rede de funcionários que são intercambiáveis e podemos manter durante todo o ano”, adianta Sacha, antes de desvendar a razão por trás do conceito para esta nova aventura. “Eu e a Melody tomamos suplementos todas as manhãs, muitos feitos com cogumelos. Juba de leão, por exemplo. Então pensámos: ‘Por que não fazer um restaurante de cogumelos? É tão bom para a saúde”, garante, sem hesitar fazer menção aos inúmeros benefícios, desde um melhor funcionamento do intestino a um coração mais resistente.
Do prato ao copo, o cogumelo é rei
Para a carta, o trio de chefs Pedro Henrique Lima, Carolina Pires Ramos e Rafael Sousa, rodearam-se de pequenos produtores, de Lisboa ao Alentejo, e de especialistas como Natan Jacquemin, fundador da NÃM – Mushroom Urban Farm, que produz cogumelos a partir de borras de café. Há apenas um prato de carne (26€), uma bochecha de vitela cozida durante 15 horas em cerveja preta, cuscuz de sêmola, lúcia-lima, soubise de cogumelo Paris castanho e puré de batata; e outro de peixe, que varia com a apanha do dia, com coleslaw com cogumelos juba de leão e jous de lula (25€). Todas as outras opções são vegetarianas ou veganas. “Sempre sonhámos em ter um restaurante em Lisboa que privilegie produtos vegetais. Comemos um pouco de tudo, mas em casa optamos sobretudo por legumes e verduras. Quando saímos gostamos de comer carne ou peixe se soubermos que é de muito boa proveniência.”
Para começar, a casa oferece um caldo de enoki. “É perfeito porque não é terroso, é muito suave, define o tom para o resto da experiência. As pessoas ficam mais abertas, não têm medo.” Além disso, combina muito bem com o couvert, com pão de fermentação natural da Gleba, brodo de shitake fermentado, manteiga de trompeta negra e avelã, e tapenade de azeitona galega com nibs de cacau (6€). Já nas entradas, destacam-se as mush and chips (16€), os cogumelos enoki panados com batatas fritas e sal de cogumelos da casa, acompanhados com natas azedas de rábano picante, e o chawanmushi (11€), feito à base de dashi, ovos e shimeji marrom. “Para construir esta carta, experimentámos mais de 160 receitas. Queríamos muito umami.” Umami é a palavra japonesa para “gosto delicioso” e é também o famoso quinto sabor. Descoberto em 1908 pelo professor Kukane Ikeda, só foi reconhecido pela comunidade científica nos anos 2000 depois de terem sido identificados na língua humana receptores específicos para o aminoácido glutamato, que – surpresa – os cogumelos produzem naturalmente.
“Queremos ajudar as pessoas a reconciliarem-se com os cogumelos. Quem não gosta normalmente queixa-se do sabor forte, mas não tem de ser assim. Nós fermentamos, grelhamos, marinamos, secamos, pomos na manteiga, por isso é que a carta é tão equilibrada. E também é acessível. Queríamos que não fosse muito caro e que, ao mesmo tempo, pudéssemos entregar o máximo de qualidade e de variedade possível.”
Entre os pratos principais, os gnocchi (20€) têm feito furor. São de queijo fresco, com ervilha, beurre blanc de vinho do Porto branco e cogumelos Cantharellus cibarius. Já o portobello braseado (17€), com glacê de cebola, puré de aipo bola, pinhão e lima caviar, é para gostos mais apurados. Pessoalmente, Sacha é fã assumido da terrine de beringela (16€), com Cantharellus tubaeformis, creme de caju fumado e água de picles de framboesas, mas também há arroz porcini com “queijo” de caju curado e conserva de cebola pérola (22€) e feijocas (13€), com caldo de cogumelos, bacon de eringhi, puré de couve-flor e picles de cenoura e coentros.
Para terminar, há apenas uma sobremesa: sorvete de funcho (9€), feito na casa com creme inglês de portobello fumado. Os cocktails de assinatura (sete no total, todos a 11€), são igualmente frescos. O preferido da casa tem sido o coriander sour, com sake, chartreuse verde, cordial de coentros, solução salina e óleo de coentros. O mérito é de Maurício Leal, que está ao comando do bar e que, em breve, quem sabe, poderá surpreender-nos também com uma carta de café, para a qual tem vindo a explorar várias possibilidades, juntamente com o barista Sebastian e o fundador do 7Flower, Perry ‘The Mushroom Fairy’.
“Temos muitas ideias para o futuro. Transformar a nossa manteiga e o nosso sal de cogumelos em produtos, criar os nossos próprios suplementos, organizar sessões de cinema. Aliás, o Louie Schwartzberg [realizador de Fungos Fantásticos] deu-nos licença para projectar o seu filme e há-de visitar-nos. Provavelmente dará uma palestra quando cá estiver”, adianta Sacha. “E queremos continuar a apostar na curadoria musical, que temos desde o início. A ideia é termos os melhores trompetistas de Portugal e da Europa a tocar. Agora, temos o Spiro [Igor Spiroski], que tem uma colecção de vinis fantástica, e o Duke B [Duke Bojadziev], um pianista macedónio com uma carreira internacional. Depois há a questão da carta, porque é mais do que sazonal, os cogumelos disponíveis variam muito, mas gostávamos de criar uma experiência de dez pratos, com um preço um pouco mais elevado.”
Da noite ao dia, o ciclo completo
Ao fim-de-semana, há ainda uma carta de brunch. Além de croissant simples (3€), que pode complementar com ovos mexidos (8€), com parmesão fresco e trufas negras; ou ovos escalfados (9€), com pinhões, tomate cereja, molica e cogumelos brancos de Paris, também há tostas e sanduíches (destaque para a sanduíche de pulled pork com molho barbecue caseiro, a 12€) e uma “sopa para a ressaca” (6€), com abóbora, cogumelos e croutons, entre outras iguarias. Para bocas doces, Sacha recomenda as panquecas de matcha (10€), que são servidas com coulis de frutos vermelhos.
“O cogumelo tem inúmeras possibilidades. Vai do mais terroso ao mais salino”, remata o chef Pedro Henrique Lima. “Claro que não é possível agradar a toda a gente, mas tentamos sempre dar o nosso melhor. Como é que, de forma criativa, conseguimos fazer diferente e surpreender. Por exemplo, a nossa sopa de oferta é feita com tudo o que sobra do cogumelo e de vegetais, que usamos para outros pratos, e é um aperitivo aconchegante, que nos faz sentir em casa. É tão simples, a pessoa chegou, está frio e com um buraco no estômago. Vem, come, fica quente e o cogumelo é digestivo e prepara para o que vem a seguir.”
Calçada Ribeiro Santos, 31. Seg-Qui 18.00-00.00, Sex 18.00-01.00, Sáb-Dom 09.00-01.00 (brunch das 09.00 às 15.00)
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