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“Parece o [Super] Mario do futuro. É o Mario num fato, cabelo tingido de cor-de-laranja e gravata ao pescoço. Só a andar e a saltar [por cima de] merdas. Mas a parte engraçada é que se pode voltar atrás no tempo.” O rapper Soulja Boy tinha lançado a seminal “Crank That (Soulja Boy)” nem há dois anos – e mal imaginávamos que tinha mudado para sempre o hip-hop – quando uns amigos o filmaram a dizer isto, por cima de uma sinfonia de risos e gargalhadas ganzadas. O “Mario do futuro” era o protagonista de Braid, um pequeno jogo de vídeo independente, disponibilizado em 2008 no serviço Live Arcade da Xbox 360 e reeditado em todos os sistemas e adicionado ao catálogo de videojogos da Netflix em Maio.
Tal como “Crank That (Soulja Boy)”, Braid foi um relativo e inesperado sucesso quando foi lançado, mas nem os maiores apologistas ousaram imaginar o impacto que teria no meio. Da mesma maneira que a influência do rapper e daquela canção se escutam em muito do que foi feito depois – de Drake e Nicki Minaj a Young Thug e Lil Nas X, passando pelas legiões de rappers que brotaram do Soundcloud – também o êxito comercial e o discurso mediático em torno de Braid mostraram a uma miríade de estúdios e produtores que os videojogos podiam ser mais do que eram. Mais ambiciosos, mais ambíguos, mais adultos. O público e a crítica estavam prontos e ansiosos por isso. Queriam mais, queriam diferente.
Naquele vídeo, que cedo se tornou viral e alguém preservou até hoje no Youtube, Soulja Boy parece estar a fazer pouco daquilo que vê e joga. Compreende-se. Num sector que confundia e (algumas, demasiadas vezes) ainda confunde complexidade e inovações tecnológicas com qualidade e valor artístico, somos condicionados a desvalorizar um título como este – em que os erros não são castigados, mas encorajados; gráfica e visualmente rudimentar, mesmo ultrapassado; com mecânicas tão simples que muitos botões nem chegam a ser utilizados. Contudo, à medida que resolvemos os quebra-cabeças e progredimos pelos seus mundos, percebemos que Braid é muito mais do que aparenta.
Ao início, é relativamente simples. Deslocamo-nos da esquerda para a direita, saltando para ou por cima dos inimigos e evitando os ocasionais obstáculos. Mas cedo são introduzidas as primeiras mecânicas de manipulação temporal, que permitem não só retroceder a acção quando algo corre mal, como são essenciais para resolver quebra-cabeças e progredir para os níveis e mundos seguintes. E em cada nova secção são introduzidas novas nuances e sistemas de jogo, progressivamente mais complexos, subvertendo as nossas expectativas.
A história é igualmente subversiva. Começa, como tantos jogos, com uma princesa raptada, que é preciso salvar. No entanto, à medida que o enredo se desenrola, em longos blocos de texto, entre os níveis, começamos a suspeitar que, talvez, a princesa não queira ser salva e o protagonista não seja um herói. Há alusões a uma ex-namorada que partiu e o quebrou, relatos de abuso. E as nossas piores suspeitas parecem confirmar-se no último capítulo. “Parecem”, sublinhe-se, porque nada é claro. Descrições de violência física e psicológica são intercaladas com passagens de livros sobre o Projecto Manhattan e citações de Robert Oppenheimer, o pai da bomba atómica (“now we are all sons of bitches”). A mensagem não é óbvia, a estrutura narrativa é turva como um sonho que tentamos reconstruir de manhã.
A recente Anniversary Edition, além de novos quebra-cabeças e níveis opcionais, inclui comentários do programador e criador Jonathan Blow. Nada, porém, que se assemelhe a uma interpretação definitiva da história e da obra. Faz sentido. Esta ambiguidade também é o que torna Braid tão especial; tão diferente da maior parte dos jogos que se fizeram antes. E depois.
Disponível para Android, iOS, PC, PlayStation 4, PlayStation 5, Switch, Xbox One e Xbox Series X/S
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