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Não devia ser um dia normal no Teatro da Politécnica, mas nos últimos dias do passado mês, mês e meio, é como tem sido por aqui. A desmontar, a acartar, a rasgar, a embalar, e sobretudo a deixar. Esta terça-feira, o ritual repete-se. Há quem desmonte, acarte e embale. E, assim que se encaminham para o camião, que com o passar das horas se vai compondo, rapidamente as pessoas que aqui estão voltam para dentro, porque há mais para desmontar, para acartar, e para embalar. Mas, ao contrário do que aconteceu durante o último mês, esta terça-feira vê novas caras a fazer idas e voltas ao camião. Convidados pelos Artistas Unidos, amigos e conhecidos também dão uma ajuda. À entrada, muitos se sentam, talvez à espera do que fazer ou então apenas a ver quem passa. Para lá das portas, toda a gente está ocupada. Mesmo quem não sabe para onde se virar rapidamente arranja o que fazer.
A saída da Politécnica era sabida, mas esta tarde ela sente-se. No meio do alvoroço, ela sente-se no ar, nos semblantes das pessoas, materializa-se no barulho dos berbequins e no pó que se levanta. À entrada, uma televisão passa um vídeo sobre o despejo dos Artistas Unidos d’A Capital, em 2002; esse era lugar para onde esperavam voltar, findo o seu tempo na Politécnica. Mas, para já, não é o que irá acontecer. Para já, as caixas, os materiais, o que se quer guardar, segue para um armazém em Marvila, embora com a certeza de que nem tudo lá caberá. A questão impõe-se: como é que um teatro inteiro vai caber num armazém de 30 metros quadrados? “É uma desgraça, é uma tragédia, é quase guardarmos o que conseguimos, deixar para trás o que não conseguimos guardar e fechar a porta”, realça João Meireles, um dos três sócios principais da companhia. António Simão, que segura um saco de parafusos nas mãos sujas, partilha da frustração de quem, atrás dele, mete mãos à obra na sala de espectáculos, que pelo que sabem irá pertencer ao Museu Nacional de História Natural e da Ciência para guardar uma colecção de objectos conservados. “É um sítio que está a desaparecer, um sítio das pessoas, um sítio de teatro, de assembleia, um sítio de pólis, de reunião. Vai desaparecer. Acho que é um sintoma muito previsível e nada anormal daquilo em que a cidade se está a transformar.”
Nesta sala, onde antes se apresentavam os espectáculos da companhia, a única coisa que falta desmontar é a estrutura de madeira preta que suportava as filas de bancos. Entretanto, os bancos vermelhos já foram levados para o camião. No chão, acumulam-se as luzes, os tripés, os cabos e, com eles, as caixas de cartão e a fita-cola. Em cima de um andaime, alguns pares de mãos desaparafusam as camadas de madeira que constituem a antiga plateia. Nelas recaem os olhares dos demais que, imóveis, parece que assistem a um último espectáculo.
Este pedaço é para guardar
A andar de um lado para o outro, dentro e fora, André Pires, de 55 anos, ainda não parou. Tem andado a carregar cartão, materiais e ripas de madeira. Tem andado a ajudar como pode e, agora, entre conversas com conhecidos, encosta-se a uma janela, enquanto calça as luvas. Veste uma t-shirt preta em que se lê “Uma casa para os Artistas Unidos” e que hoje se torna um uniforme, não só para quem pertence à companhia como ele, mas também para os outros. “Ao longo da história dos Artistas Unidos houve várias mudanças. É algo que faz um bocadinho parte da nossa história, da história desta companhia, estas mudanças e não saber para onde se vai mudar e as reconstruções constantes”, diz. Contudo, ainda que a tristeza seja grande, André não deixa de ver a beleza no reencontro que o acontecimento proporcionou. Tal como num funeral, têm aparecido “todas as pessoas da vida toda”. À nossa frente, um homem, uma mulher e uma criança embalam a parte lateral da bancada, que inclui os nomes de todos aqueles que passaram por aqui, quer fosse para encenar uma peça, assistir a uma peça, ou ajudar a desmontar uma plateia. Este pedaço de madeira é para guardar.
Por muito que a maioria do que havia para tirar já tenha saído daqui, há coisas que teimam em permanecer. É o caso da parede do lado direito da entrada do Teatro da Politécnica, onde estavam colados os cartazes das peças apresentadas. Grande parte do papel já foi arrancado e é o amarelo da parede que começa a aparecer. A arrancar cada pedaço de papel encontramos alguns jovens, pelo menos uns cinco que, aos poucos e com alguma paciência, avançam nesta tarefa. À medida que vamos passando por lá, os turnos vão rodando e as pessoas também.
Quando chegámos, Vitória, de 17 anos, estava aqui a atirar pedaços de cartazes para o lixo, agora está na sala de espectáculos a enrolar cabos. Outros seguiram-na ou mudaram de posto. Por outro lado, há quem não arrede pé desta parede, como Érica Rato, de 17 anos, que costuma seguir o trabalho da companhia e, por isso, decidiu juntar-se à causa. “É muito espectacular a ideia de estar aqui tanta gente que há gente a mais, há demasiadas pessoas a colaborarem em simultâneo.” E, entre quem se aglomera cá dentro, é Pedro Monteiro, de 29 anos, que vai dando uma ajuda a Érica. “Isto é a prova de que o teatro é isto, é o encontro sob as mais variadas circunstâncias. As pessoas aparecem para fazer aquilo que sempre fazem, que é sonhar, mas a verdade é que o teatro não é só feito de sonhos e acho que as pessoas que aqui estão hoje, não só vêm cá para ajudar, mas também vêm cá para protestar.”
Sim, há quem venha para ajudar, há quem venha para protestar, mas também há aqueles que vêm apenas para se despedir, para dizer um último adeus, ou para mostrar o seu apoio. Sentada numa fila de bancos que se encontra à entrada, Isabel Soares, 76 anos, diz-nos que assistiu ao começo dos Artistas Unidos. N’A Capital, não perdeu um espectáculo e admite ser uma “fã de longa data”. Esta terça-feira, não está aqui a acartar caixas ou a levar coisas para o camião, está simplesmente aqui. Com um leve sorriso nos lábios, olha em volta e deixa-se estar, enquanto por ela passam dezenas de pessoas, para trás e para a frente. Vem despedir-se e vem também mostrar o seu apoio, “para lhes dar uma força, pela esperança que eles encontrem um espaço, ou que lhes dêem um espaço, um novo teatro de que nós tanto precisamos na nossa cultura”. Mas, não fica por muito mais tempo. “Tem de sair daqui”, vem dizer-lhe uma rapariga, que lhe explica que vão levar dali os bancos. Em segundos, já não há bancos. Isabel ciranda em direcção a uma segunda sala, a sala de exposições, que está vazia. Restam apenas umas últimas caixas.
Um beco sem saída
Ao voltar para a entrada, à volta de uma mesa, enquanto Érica e Pedro continuam a arrancar parte da história dos Artistas Unidos da parede, juntam-se várias pessoas à espera para subscrever um abaixo-assinado que tem em vista uma nova morada para a companhia. No fim deste ano, o último espectáculo da temporada será apresentado no Teatro Variedades, que reabre em Outubro, mas ainda não há lugar para ensaios, já que o espaço no Parque Mayer não tem salas que possam ser usadas para esse propósito. Enquanto se esvazia a Politécnica, paira esta incerteza sobre o futuro, que pode vir a levar os Artistas Unidos a um beco sem saída. “Se no início de 2025 não tivermos um espaço próprio, é toda a companhia que fica em risco e que está posta em causa naturalmente”, explica João Meireles, que nota uma atenção maior da Câmara Municipal de Lisboa para este problema e, por isso, não descarta uma “perspectiva de futuro mais risonha”, pelo menos para o início do próximo ano.
À medida que a tarde avança, o teatro fica mais vazio, tanto de coisas como de pessoas. Alguns, cansados, deixam-se descansar à porta, ou nos degraus virados para a entrada. Muitos vão permanecendo em pé, à conversa e à espera dos momentos que se seguem. São quase seis da tarde de um dia de Verão, o sol ainda brilha e aquece-nos a pele. Nós deixamos. Deixamo-nos estar, porque sabemos que falta fazer algo. Não vai ser fácil, é preciso um escadote alto e alguém que o faça, que faça aquilo que será provavelmente a coisa mais difícil de fazer no dia de hoje. E, então, o que ninguém queria ver acontecer, acontece. Primeiro, do lado esquerdo. Depois, do lado direito. As duas faixas que identificavam os Artistas Unidos caem, enfim, no chão.
As portas da Politécnica ainda estão abertas, as paredes mais despidas. Cá fora, uma jovem abraça-se a uma mulher, encostada ao camião, a chorar. Também ela chora. Não serão as únicas. Durante toda a tarde, a tristeza sentiu-se, nas conversas, nos olhares, nos movimentos. Sentiu-se nas pessoas que, como Pedro Carraca e os seus sócios, António Simão e João Meireles, se sentem “um bocadinho desamparados, um bocadinho defraudados, com o coração nas mãos, mas também tristes”.
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