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Carminho anda há pelo menos meia dúzia de anos, desde o lançamento de Maria, a tentar devolver ao fado uma certa crueza. “Quando o fado é retirado às casas de fado e colocado em estúdio perde-se uma coisa muito importante que não é música, mas que é som, o ambiente”, dizia então, nos primeiros minutos de uma longa entrevista, algures na LX Factory. Volta a cirandar esta ideia agora, a meio de uma breve conversa na Pousada de Lisboa: “O Steve Albini procura uma certa crueza na música, que eu aprecio. O fado tem essa crueza nas casas de fado, porém, nos discos, não é assim tão comum alguém procurar isso.” Mas ela não se tem cansado de procurar.
Foi essa busca incessante que a levou aos estúdios Electrical Audio, o santuário do lendário músico indie e engenheiro de som em Chicago, em Outubro do ano passado. A ideia era só “ter uma experiência”, talvez aprender algo com o mestre, mas o dia passado com Albini e a sua banda em estúdio traduziu-se em quatro canções, agora reunidas num EP: Carminho at Electrical Audio. Chegou a considerar deixá-las na gaveta, mas um apelo da família de Steve Albini, que morreu em Maio, com 61 anos, convenceu-a a partilhar os fados que gravou com o ícone do indie rock americano. E com Caetano Veloso.
Como é que deste por ti nos estúdios Electrical Audio, do Steve Albini?
Estava em digressão com o disco Portuguesa e continuava a fazer exactamente o mesmo que me levou a esse disco – a praticar a composição de novos fados. Isto é, a compor fados tradicionais e originais para poemas meus, para letras que escrevia. E tinha a sorte de estar em tournée, de ter a minha banda nos camarins e poder formalizar de alguma maneira esses fados e eles tornarem-se bastante rodados.
Os fados que estão no disco já tinham sido tocados ao vivo durante a digressão?
Não. Só nos camarins. Uma coisa pessoal, de prática, entre nós. Porque queria compreendê-los e ouvi-los, então pedia que eles os tocassem comigo. E acabámos nos ensaios de som, ou assim, por praticar muito. É uma coisa que fazemos imenso: praticamos os meus fados muito tempo antes de os gravarmos. Portanto, a estrada já tinha muito corpo e muita vida a estes fados. No entanto, eles estavam numa gaveta, eram experiências, eram ideias – algumas delas mais acabadas, outras menos.
E como é que o Steve Albini entra nesta história?
Quando se aproximou a tournée americana, eu pedi ao meu agente que garantisse que íamos ter [um concerto em] Chicago e que íamos ter um dia livre, para tentar marcar uma sessão com o Steve Albini no estúdio dele. Queria ter essa experiência.
Porquê? Quais foram os discos que te deram vontade de gravar com ele?
Vários discos. Da PJ Harvey, dos Nirvana, também dos Pixies. O Steve Albini procurava uma certa crueza na música, que eu aprecio. O fado tem essa crueza nas casas de fado, porém, nos discos, não é assim tão comum alguém procurar isso.
Essa crueza era algo que já procuravas no Portuguesa. E no Maria.
Andava à procura, mas queria trabalhar com alguém que tivesse muita experiência a fazer isso.
Ao contrário de ti, que estavas...
A começar. Sei que isto é aquilo de que eu gosto, e que esta é a minha busca, pelo menos por agora. Essa ideia de reproduzir a experiência do combo ao vivo, mas no estúdio. Já explorei isso, com o Quim [Montes] do Namouche, no disco Portuguesa. E quis tentar fazê-lo com alguém que tinha anos e anos disto, que era uma lenda.
Imaginavas que pudesse nascer um disco dessa sessão?
Não podia pensar que um dia de estúdio iria resultar em alguma coisa, porque isto não se pode premeditar. Um dia de estúdio pode não dar em nada. Pode haver um problema técnico, um problema emocional.
A voz falhar...
Ou mesmo um problema de empatia com ele.
Pois.
Não fazíamos ideia do que ia acontecer. Só sabia que ia ter o privilégio de ter esta lenda a captar e a misturar o que quer que fosse que fizéssemos em estúdio. Queria expô-lo um bocado à minha banda de fado, ao som que andava e que ando a fazer, e perceber como é que ele o captaria, como é que ele o ouviria. Porque ele também, já de si, é conhecido pelo som bastante cru e bastante na cara das suas gravações.
Tanto que ele dizia que não era um produtor, que era só um engenheiro de som.
Sim, que tentava reproduzir o que artistas faziam ao vivo. E foi isso que aconteceu. Gravámos em fita, o que também encurtou um bocadinho o processo, todos juntos na mesma sala, a conviver como uma banda ao vivo, mas naquele estúdio e naquele espaço que nós definimos e ele depois captou e gravou. E os fados começaram a sair uns atrás dos outros, gravávamos dois ou três takes de cada um, e ficavam feitos, e bastante recompensadores. Havia aquela sensação de tema cumprido e acabado. Então passávamos para outro fado e perguntávamos ainda se tínhamos tempo para mais um. Fiz o “Deixei a minha casa”, depois fiz o “Não Olhes Para Os Meus Olhos”. Depois fui buscar o “Gota de Água”, que era algo que também andava a ensaiar com eles, mas não sabia se iria acrescentar algum texto aos versos do António Gedeão, ou se os deixava assim. Por fim, tínhamos ainda algum tempo de gravação e surgiu a ideia de fazer “Os Argonautas”.
Em dueto com o Caetano Veloso. Como é que ele aparece aqui?
O Caetano tinha-me convidado para participar numa faixa do Meu Coco, o último disco de originais dele, chamada “Você, Você”. E quando veio a Portugal, na sua tournée mundial, convidou-me para fazer uns concertos portugueses. E assim foi, cantei o “Você, Você”, mas disse-lhe que era muito ingrato, muito cruel, só cantar uma música, queria cantar pelo menos mais uma. Ele riu-se e perguntou o que é que eu gostaria de cantar, e lembrei-me imediatamente de “Os Argonautas” por ser realmente um rasgo de transatlanticidade, uma união entre estas duas línguas que são a mesma, mas que têm pulsões tão diferentes e movimentos de contaminação em várias frentes. Andávamos a discutir muito esta ideia, que a língua precisa de se unir e ao mesmo tempo de cada um se identificar e de ganhar algum lugar de pertença. E “Os Argonautas” têm Fernando Pessoa, têm Caetano Veloso, têm o mar, têm o porto. Até foi composto como um fado, tinha já um lado português.
Porque é que decidiste gravá-la em Chicago?
[O Caetano Veloso] disse que um dia tinha de gravar esta versão, porque tinha a guitarra portuguesa também ao vivo, nos concertos. E lembrei-me de tentar recriá-la em estúdio. Depois mandei-lhe esta versão e perguntei se não queria pôr a voz. Ele gravou no seu estúdio, enviou para o [Electrical Audio] e depois foi misturada junto com o resto do tema.
Foi ainda o Steve a fazer essa mistura?
Foi a única coisa que não fez. Nós saímos do estúdio já com uma pré-mistura feita e referências de coisas que ambos estávamos a partilhar. Ou seja, ele fez-me umas perguntas, misturou a voz e eu dei-lhe alguns inputs. Depois vim para Lisboa, e ainda falámos durante umas sessões. Ele mandava-me misturas, havia um diálogo, e entretanto ele fechava-as. Faltava só a parte do Caetano Veloso, em “Os Argonautas”, mas ele disse que não era uma problema, que abríamos a mistura e ele incluía a voz. Depois, em Maio, ele morreu. Já não era vivo quando o Caetano gravou a parte dele, porém fiz questão de que a voz fosse de volta ao estúdio e que fosse para a fita, misturada com o resto dos instrumentos. Era muito importante para mim.
Se ele não tem morrido, esta sessão podia ter sido o início de algo maior?
Sim. Depois daquele primeiro dia, fantasiei logo voltar. Não sabia que dava para fazer tantos temas num dia só. E o processo em fita também é muito mais rápido, nesse sentido, porque tens um take, e tens de ver se gostas, se tem muitos problemas, se tem poucos problemas, como é que o vês, se tem alma… É um bocadinho por estes factores mais abstractos e mais abrangentes, que um take entra ou fica de fora. E não tanto por aquela malha, por aquela nota. Porque há erros e esses erros são bons.
São o que dá vida às gravações.
Completamente. Portanto, assim que acabaram os quatro temas, pensei voltar e fazer um álbum inteiro. Porque fazia sentido. A experiência correu bem, há imensa empatia com ele. Também sinto que teve empatia comigo, com os meus músicos. E a minha banda é ideal para isto, porque são músicos brilhantes e ao mesmo tempo muito vivos do ponto de vista criativo. Dão muito a uma gravação. Só que depois ele faleceu.
Quando é que decidiste editar esta gravação?
Há pouco tempo. Por isso é que é uma edição surpresa. E também uma surpresa para mim, porque eu depois fui para o estúdio, já estou a gravar outro disco, no Namouche. Fui para o estúdio e comecei a fazer outros temas. E, de alguma maneira, sentia que...
Estava algo inacabado?
Que estes temas não iam casar com o resto. Não era justo nem para estes, nem para os outros. E aquilo também é a captação de um momento. Tinha uma história com uma pessoa, uma lenda da música, e não queria estar a repartir essas ideias num disco com vários temas. Ou saíam os quatro, ou não saíam mais. E acho que não saírem também não é justo. E há uns meses houve um comunicado da família dele e do estúdio, a pedir a quem tivesse fotos, experiências ou depoimentos sobre o Steve que os partilhasse. Nesse momento, senti-me muito inspirada para editar o disco. Para o partilhar.
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