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Marco Martins fez um périplo por aldeias remotas. Visitou Podence, em Trás-os-Montes, foi à Roménia, à Moldávia e à Sardenha. Mergulhou nas paisagens rurais para descobrir o universo dos caretos e suas máscaras. O gatilho para esta excursão foi o livro Wilder Mann – The Image of the Savage, de Charles Fréger, em que o encenador da Arena Ensemble tropeçou numa visita à casa do produtor e amigo Renzo Barsotti. Tratava-se de uma compilação de fotografias de mascarados de aldeias por toda a Europa. “As imagens eram quase todas iguais, o que mudava era a máscara, tinha quase um carácter antropológico. Fiquei muito intrigado por elas”, lembra.
Tão intrigado que depressa começou a pensar num espectáculo que reflectisse sobre a carga simbólica da máscara e os rituais de passagem de estação. Quatro anos depois, o realizador de filmes como São Jorge e Alice leva à Culturgest, em Lisboa, Selvagem, de 25 a 27 de Março, uma peça que é falada em português, italiano e sardo – reflexo de um elenco construído de mochila às costas.
Como é que se encontra um elenco em viagem?
Pois (risos). É difícil. Muitas vezes as primeiras conversas com os intérpretes têm um objectivo que é só conhecer determinado ritual ou determinada região, não são ainda feitas no sentido de ter aquele intérprete dentro do espectáculo. São entrevistas exploratórias. Depois há uma pessoa que trabalha comigo que volta a esses territórios e faz um leque de entrevistas ainda mais alargado. Quando recebo essa segunda pesquisa já é mais direcionado para o espectáculo. Depois faço workshops longos em que vou para estes locais e convido as pessoas que estão disponíveis e acabo por escolher. Mas costumo dizer que não somos nós que escolhemos as pessoas, são as pessoas que nos escolhem a nós neste tipo de projecto. Implica uma disponibilidade tão grande. No cinema é muito fácil porque, apesar de tudo, as pessoas já viram muito cinema, já viram vários géneros: documentário, ficção… Quando dizes 'vou fazer um filme' as pessoas têm ideia do que é fazer um filme. Quando nós dizemos 'vamos fazer uma peça de teatro', a ideia que as pessoas têm do teatro não é exactamente a mesma. O teatro para eles é uma coisa estagnada no tempo, às vezes é um processo difícil de encontrarmos um território comum de colaboração.
A questão do anonimato que as máscaras conferem é algo sobre o qual a peça reflete?
Não. Acho que a história do anonimato está muito ligada às práticas contemporâneas da máscara no universo digital, à criação de uma máscara facial que nem sequer é uma máscara física, que nós colocamos sobre a cara. É a nossa própria cara que nós vamos transformando. A máscara tradicional, a máscara que está ligada à tradição, não tem a ver directamente com essa ideia de esconder o rosto. Está muito mais ligada à ideia de catarse, de diversão, de divergência ritualística, do que à ideia de esconder o rosto. A colocação dessa máscara convoca esse lado selvagem e daí o título da peça, que tem a ver com a transgressão, com o excesso, com a exaltação. Toda a gente sabe quem são estas pessoas dentro da aldeia.
Os caretos de Podence, de chocalhos à cintura, perseguem as raparigas solteiras. Numa altura em que se fala tanto do assédio e da violência sobre as mulheres, deu em algum momento por si a questionar esta tradição?
O lado de ser, de facto, uma festa sempre exclusiva de homens é comum em toda a Europa. Não há nenhuma festa destas, na Europa toda, em que exista uma presença das mulheres. Curiosamente agora em Trás-os-Montes já existem algumas mulheres em algumas aldeias que se vestem de caretos. Durante muito tempo no meu elenco tinha uma rapariga, depois ela acabou por sair. Mas tem a ver com essa metamorfose, dos homens em animais, desse lado mais selvagem. É uma festa toda ela transgressora em diversos aspectos. O carnaval é uma festa de catarse, não é uma festa do politicamente correcto. Na festa de carnaval da aldeia fala-se mal das pessoas, faz-se um relato do ano, fala-se dos casamentos, e portanto há este excesso e este lado até bastante assustador em certos rituais. Os nossos não são os piores. Por exemplo, na Alemanha há rituais deste tipo em que as aldeias ficam de facto esvaziadas porque são de uma grande agressividade. Obviamente depois tem este lado de o álcool estar muito envolvido, e isto faz tudo parte desta festa, deste ritual, digamos assim. Claro que depois cada sítio tem características diferentes, um carnaval do Haiti é diferente do de Bragança, mas na sua essência são a mesma coisa.
O elenco final é exclusivamente masculino?
Sim. O mais novo tem 18 anos, é um pastor de uma família grande de 7 irmãos. O mais velho acho que tem 60 anos e é um taxista da Sardenha que durante o Verão andava a transportar milionários russos e durante o Inverno trabalhava na terra como agricultor.
Qual era a intenção inicial de ter uma mulher no grupo?
Era curiosamente isso, perceber até que ponto estas manifestações e estes rituais se iam transformando, até ao ponto de incluir uma rapariga. Era uma rapariga que fez o seu próprio fato de careto, fez a sua própria máscara e que durante o carnaval saía e era aceite pelos outros foliões. Ela dizia 'a minha mãe e a minha tia odiavam o carnaval, e eu em vez de odiar o carnaval transformei o meu próprio também num careto'. Ou porque tinham medo ou porque tinham medo de sair à rua. Isso não é muito comum.
O que levou à sua saída?
Questões de tempo, ela estava a estudar Medicina e era muito tempo que [a peça] lhe ia ocupar, acabou por não ficar. Lá está, num espectáculo destas características, as pessoas que tu tens vão transformar o espectáculo. Vamos entrevistando as pessoas e o espectáculo é construído a partir daí, a partir de relatos autobiográficos. Se tivesse uma perspectiva feminina ela seria uma perspectiva muito central no espectáculo. Não a tendo é outro espectáculo. O espectáculo vai se transformando à medida que vais escolhendo as pessoas.
Já na peça Actores [2018] trabalhou sobre as memórias do elenco, e em Provisional Figures Great Yarmouth [2018] e Perfil Perdido [2021] também. O teatro é sempre um espaço de comunhão na criação?
Sim e é também um espaço para mim de pesquisa sobre o outro. É o momento que encontro na minha criação para tentar perceber mais sobre um universo que não é o meu, que me é distante, e normalmente tem a ver ou com os actores e com a forma de expressão ou com uma comunidade particular, como é o caso da Baralha [2010], que era sobre uma comunidade cigana, ou Estaleiros [2012], sobre os estaleiros de Viana, ou o Great Yarmouth sobre os trabalhadores portugueses emigrados em Inglaterra. Para mim o teatro é sempre um laboratório de pesquisa, na verdade.
É a zona de experimentação? Por oposição ao cinema, à publicidade ou a televisão…
Para mim, o lado de experimentação está muito mais presente no teatro do que nas outras áreas. Porque há esta ideia de distúrbio, laboratorial, de que há um tempo que é um tempo dilatado em que eu estou a trabalhar com outras pessoas de outros universos. Para mim o teatro de repertório é uma coisa que não me interessa em particular, um teatro que parte do texto para o trabalho com os actores. A mim o que me interessa muito mais é este trabalho junto de comunidades, este trabalho de pesquisa, este trabalho sobre o outro.
Culturgest (Lisboa). 25-27 Mar. Sex 21.00 Sáb 19.00. Dom 17.00 14€
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