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Comefinamento: Taberna da Rua das Flores

Todas as semanas, durante o confinamento, experimentamos um serviço de take-away ou entrega ao domicílio.

José Margarido
Escrito por
José Margarido
Crítico Comer&Beber
Taberna da Rua das Flores
Gabriell Vieira
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Diz-se que o tempo faz ao vinho o mesmo que aos homens: apura os bons, azeda os maus. É um belo rifão que se pode aplicar também à comida. Não falo do tempo como condimento, das virtudes do lume brando ou dos milagres do vagar na cozinha. Falo da esperança média de vida de um prato depois de feito. É esse tempo que me importa cronometrar quando encomendo comida.

Penso nisto dois dias depois de a Taberna da Rua das Flores me ter trazido o jantar a casa. Recordo que nesse anteontem me tinha esquecido de almoçar e, em retrospectiva, encontro aí a razão de me ter alambazado na encomenda e estar agora a tentar reanimar dois amorosos fígados de pato que sobraram. Bastam três minutos de fogo e as glândulas ressuscitam, tenras e suculentas como as descobri 48 horas antes, num suave dégradé de cozedura interior. Junto-lhe um ovo estrelado, em escrupulosa observação da lei universal dos pratos reaquecidos, e quase grasno de alegria.

Dir-me-ão: “Oh Zé, pá, mas nem toda a comida aguenta de um dia para o outro!” Bom, antes de mais, folgo em saber que já temos à-vontade suficiente para me tratarem por Zé. E depois respondo-vos que sim, bem sei, nem todos os pratos têm a mesma longevidade. Mas a questão é esta: na comida, a resiliência é sempre medida de qualidade. Uma pizza, como há dias o mestre Alfredo Lacerda bem pregava nesta crónica, é para comer acabadinha de fazer, o que faz dela um potencial disparate do delivery. Mas mesmo em rigor mortis é possível a avaliação: se a pizza for boa, horas depois mata a fome com prazer; se for má, definha já num cadáver emborrachado.

A validade de um prato pode ser medida pelo valor dos ingredientes e pelo talento de quem os trabalha. Estes fígados (10€) tinham sido grelhados – reparem: grelhados –, ligeiramente fumados e salteados com laranja e vinho do Porto, juntamente com pedaços de marmelo, também grelhados (um glorioso conjunto servido com salada de agrião e cogumelos selvagens). Como bem sabem, poucas coisas encurtam tanto a vida útil de um prato como uma grelha. E no entanto, eis-nos aqui.

Recuemos dois dias. Faz tempo que não vou à Taberna e decido matar saudades. Mas mal ponho os olhos no menu, a decisão complica-se. Porque tudo na bendita lista que André Magalhães & Cia publicam diariamente online me fala ao coração, pela inspiração tradicional e pelo ritmo sazonal. Acresce que tudo é enunciado com um mimo e uma precisão que dispensam prosas de Margarido.

Além dos fígados sobre os quais já me babei, aposto numa trouxa de alheira com cantarelos (12€). Entrouxada numa folha de prata chega uma fatia de pão torrado, coberta com cebola caramelizada e alheira desfiada. Aninhados na alheira, um ovo mal cozinhado e cantarelos (os mesmos cogumelos dos fígados) salteados. O conjunto é de uma harmonia delicada, equilibrando texturas densas e sabores fortes sem qualquer excesso (há por ali uma nota de laranja a ajudar). E lá está: nada a lamentar, mesmo depois de o pão ter amolecido ligeiramente com a viagem.

A isto juntei ainda dois pastéis de massa tenra (4€) e uma sandes de lula frita (6€), petisco que os taberneiros criaram para o Quiosque do Largo de São Paulo (bem disse que me tinha alambazado). Os pastéis roçam a perfeição, no tempero da carne e na suavidade da massa, que nos faz esquecer que isto é uma selvajaria gastronómica, feita de farinha e banha e fritura. Sobrou um para o dia seguinte e sim, estava vivo e saborosíssimo, mesmo depois de perdido o viço das bordas crocantes.

Resta gabar a sandes de lula, feita com pão levemente torrado a abraçar pedaços do cefalópode, fritos num polme bem feitinho e envolvidos numa maionese fresca e picante. Acompanham umas batatas fritas às rodelas, fininhas, ainda razoavelmente firmes (mas enfim, são batatas fritas, espécie a que deveriam ser aplicadas restrições de circulação como a toda a gente). No conjunto, uma gordice boa que me deixa ainda mais convencido de que pedir fast food é cada vez mais tempo perdido. E não há perda mais lamentável do que a perda de tempo.

Menu: tberna.com. Encomendas: 21 347 9418. A taxa de entrega varia consoante a zona (máximo 3,5€)

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