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Ir ao teatro, tal como tudo o resto, é uma experiência que todos vivemos de maneira diferente. Mas como será ir ao teatro ver um espectáculo, quando não conseguimos ver? Como é que as pessoas cegas vivem essa experiência? Como é que absorvem o que não estão a ver? Como é que o sentem? E qual é o poder que reside na falta desse sentido? São questões às quais Cintya Floriani Hartmann se propôs responder numa investigação que, agora, é publicada em livro. O lançamento de Theasthai: O poder de não ver acontece este sábado, 16 de Novembro, na Escola do Largo. A autora vai conversar com Marcos Barbosa, director da escola, e com outros convidados do meio artístico.
Cintya formou-se em jornalismo e trabalhou em gestão de recursos humanos, de onde passou para a gestão de projectos nos sectores público e privado. Quando ainda estava a viver em Madrid, decidiu mudar-se para Lisboa e candidatar-te a um doutoramento em teatro, no Centro de Estudos de Teatro, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O doutoramento era “um sonho”, o teatro uma “paixão” e então surgiu a vontade de perceber como é que as pessoas cegas habitam este mundo. “É uma chave muito importante pensar que um espaço público como o teatro, na raiz do seu nome (theatrum), significa lugar de onde se vê ou onde se vai para ver. O que faz uma pessoa que não vê num lugar desses?”, questiona-se a investigadora brasileira à Time Out.
Depois, veio a vontade de fazer a diferença e, mais do que um estudo sobre as artes performativas, Cintya queria focar-se nas pessoas. “Não é um livro sobre inclusão, é o primeiro livro em língua portuguesa sobre a experiência da pessoa cega em espectáculos de teatro e é o primeiro doutoramento em Portugal sobre a cegueira no teatro”. A investigação começou em 2019 e, ao longo de quatro anos, desdobrou-se em várias fases.
Primeiro, o trabalho de campo. Para entender como é que as pessoas cegas se moviam e comportavam no teatro, a autora começou por frequentar dois teatros no centro da cidade – o São Luiz e o Teatro Nacional D. Maria II – e, depois, sessões com audiodescrição dos espectáculos. “Era muito importante estar em dois espaços públicos, já que eu trabalhava com a ideia de que teatro é um espaço público, um espaço da vida pública, de encontro social, algo que até devia ser cada vez mais. E é a única arte onde o encontro com o artista é ao vivo, o que permite que o teatro seja um laboratório de comportamento humano”, explica. Daqui, ficou a perceber “quem entra, quem é conhecido, quem vai para ver o espectáculo, quem vai para ser visto”, e como se comporta a pessoa cega quando entra nestes dois espaços.
Foi assim que identificou sete pessoas com a deficiência, de diferentes áreas profissionais, que, com a ajuda da Associação Olhar Activo de Sintra, se juntaram à investigação. Para Cintya, revelou-se importante trabalhar em torno de dinâmicas de grupo. Aliás, chegou a desenvolver a Oficina da Diferença, encontros entre artistas, cegos ou não, que contou com a participação de Raquel André e Aliu Baio, a criadora e o músico que assinam o espectáculo Belonging / E di / Pertenencia / Zugehörigkeit / Pertença / 絆 (em cena até 17 de Novembro no São Luiz).
Ao longo dos quatro anos de investigação, Cintya foi percebendo como a realidade de quem vive com cegueira é, inevitavelmente, incomparável à de quem vê, até porque tudo o que nos rodeia é pautado em função de uma vivência normativa. “O poder de não ver é poder absorver, mas absorver com o sistema háptico, que não é só o tacto, também é o que está em volta. Eles têm uma espécie de percepção holística, que nós também temos, mas que perdemos devido ao monopólio da visão”. E, no que toca à criação artística, “só é possível criar algo novo a partir de uma relação que é de amor por algo, a partir da diferença. Então, o poder de não ver também é esse poder de deixar o corpo falar mais do que aquilo que a mente acha que vê”, acredita.
Por outro lado, quando se vai assistir a uma peça de teatro, as questões da acessibilidade, ou a falta dela, têm de ser pensadas, idealmente na hora da criação e não apenas como um complemento. “Se quem cria considerasse que existe uma condição humana que nos faz todos diferentes, a própria criação poderia ser mais acessível, sem que tivesse de depois acoplar um acessório, que pode ser uma interferência na mediação. O teatro é essa possibilidade de estar ali, sem mediação com o artista”, pensa a investigadora. A propósito da acessibilidade nos espectáculos do São Luiz, a directora executiva Ana Rita Osório também partilha da mesma opinião – de que a criação tem de passar por aqui.
No sábado, a partir das 16.00, o lançamento de Theasthai: O poder de não ver vai contar com a participação de Cintya, de Marcos Barbosa, director da Escola do Largo, Hélder Bértolo, biofísico e neurocientista, e os artistas Raquel André, Aliu Baio, e a actriz Inês Gonçalves. O público terá ainda a oportunidade de experienciar, durante um período de tempo, o que é ser cego.
Escola do Largo (Chiado). 16 Nov. Sáb 16.00. Entrada livre
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