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O livro Homossexualidade e Resistência no Estado Novo, lançado este mês, marca a estreia de Raquel Afonso num trabalho de investigação sobre ser gay durante a ditadura.
Uma tese de mestrado transformada em livro. Raquel Afonso, 25 anos, estudante de Antropologia na Universidade Nova de Lisboa – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, sempre se interessou “por temas LGBT”. Foi quando começou a pesquisar documentos para um trabalho de uma cadeira da faculdade, “uma perspectiva diacrónica dos direitos LGBT em Portugal”, que se apercebeu da pouca documentação existente.
“Não sabia e na pesquisa apercebi-me de que os homossexuais eram considerados criminosos e doentes durante o Estado Novo e de que não havia praticamente bibliografia nenhuma sobre este assunto”, conta a investigadora. “Além do livro da São José Almeida [Homossexuais no Estado Novo, de 2010 e uma referência para Raquel] existia outro da Susana Pereira Bastos, uma tese de doutoramento sobre os vadios no Estado Novo [O Estado Novo e Seus Vadios, de 1997], onde se enquadravam os homossexuais.” De resto, mais nada.
A curiosidade levou-a a várias entrevistas (ao todo doze, mas só dez testemunhos foram usados no livro), com cinco homens e cinco mulheres homossexuais que viveram na ditadura. “Interessei-me por histórias de pessoas comuns”, continua Raquel. “O livro da São José Almeida foca-se mais em pessoas que já eram conhecidas, como o António Botto ou a Judith Teixeira. Então e as outras pessoas? As pessoas comuns?”
Foram essas que tentou encontrar a partir de um contacto de uma amiga mais velha, que depois originou outros contactos, uma “bola de neve”. Mas a investigação não foi fácil. “Encontrar pessoas que queiram falar é muito difícil”, afirma. “Ainda hoje há uma discriminação muito grande. Mesmo que a nível legal isso já não seja tão visível, a nível da sociedade ainda o é, principalmente para pessoas mais velhas. Cresceram num período repressivo e há questões geracionais que ainda se mantêm.”
Os entrevistados são todos anónimos, alguns a pedido dos próprios, outros por escolha da autora, “para preservar a sua identidade”. Alguns ainda estão no armário, mesmo para a família. “Quando cheguei a casa de uma das minhas interlocutoras para a entrevistar, ela deu-me logo um livro e disse-me para fingir que ali estava para explicações porque o sobrinho dela estava em casa e não queria que ele soubesse”, recorda Raquel.
Nenhum destes entrevistados foi preso por ser homossexual. “Normalmente isso acontecia com as pessoas de classes mais baixas. As pessoas mais ricas subornavam os guardas e, ou iam para casa, ou nem sequer eram incomodadas”, continua. “Como o caso Ballet Rose. Apesar de irem a julgamento, acabaram todos ilibados.”
Há testemunhos de quem se submeteu a choques “para reverter a sua sexualidade”, de quem procurava outros homossexuais em estações de comboio, jardins públicos e urinóis e acabou enganado por “chantagistas”, os chamados “arrebentas”, “falsos gays”, explica, e também de mulheres que combinavam encontros em casa, “mais seguros”.
“Já nos finais dos anos 60 começaram a aparecer os bares e discotecas gay. De dia as pessoas juntavam-se na Brasileira e iam a bares como o Brick ou o Memorial. Mas não eram tidos como espaços seguros. A polícia fazia raids e levava toda a gente na ‘ramona’, o carro da polícia.”
As histórias desta altura estão compiladas agora em Homossexualidade e Resistência no Estado Novo (14 euros), lançado este mês pela editora independente Lua Eléctrica, especializada na publicação de teses e ensaios científicos. “A minha orientadora [da tese] sempre disse que isto tinha de sair e eu concordei porque são memórias que estão escondidas e precisam de ser resgatadas enquanto é tempo, enquanto as pessoas estão vivas”, diz Raquel. “É muito importante não perder uma parte da história, conhecer a história toda e não apenas a oficial.”
O livro não é o fim da investigação. “É o princípio de outra coisa maior.” Neste momento está a desenvolver uma extensa pesquisa que compara a homossexualidade e resistência nas ditaduras de Portugal e Espanha no século XX.