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Não se deve julgar um livro pela capa. É o que se costuma dizer, mas a metáfora – sendo bonita – não tem lugar cativo na indústria literária. Num universo de escolhas potencialmente infinitas, a capa não serve só para proteger o miolo: é o primeiro contacto do leitor com a obra e há quem diga que, não raras vezes, faz ou desfaz o sucesso de um título. Mas, se é verdade que a capa deve conversar com o texto, quem é que decide o que há para dizer? Os autores, porventura. Os editores certamente. Os designers, claro. Por vezes, e cada vez mais, também as equipas de comunicação e marketing e até o comercial. Entre tantas e tão diferentes perspectivas, resumir numa capa o que uma obra representa (e despertar nos leitores vontade de ir para além dela) é particularmente desafiante.
“Às vezes arriscamos e compensa. Outras dá asneira e não vende”, diz Ágata Ventura, designer-chefe do Wonder Studio, que nasceu como atelier criativo da 20|20, agora parte do Penguin Random House Grupo Editorial. “Por norma, tentamos adaptar tudo o que resulta lá fora. Quando é demasiado caro, é preciso fazer de raiz.” Se for uma colecção, como os Clássicos Penguin, o trabalho está, à partida, facilitado. O mesmo acontece com chancelas com uma identidade visual própria, como a Elsinore, ou até com determinados géneros literários, que evocam tendências muitas vezes mundiais. “Há uma fórmula, por exemplo, para romances de época, de autores como Sarah MacLean. Aposta-se muito na menina, no castelo e no jardim, porque é disso que as leitoras desses livros estão à espera”, revela. “Mas há sempre um briefing do editor e inputs de outros departamentos.”
Quando se olha para a capa como cartaz, é fácil perceber porque fará sentido marketeers participarem no processo de a compor. Há perguntas para as quais estão mais despertos. Quanto vai custar? Será que vai vender? “Ou até se o título é legível nas prateleiras. Em determinadas estantes, se estiver muito para baixo, não se lê. É neste tipo de coisas que pensamos”, partilha Marta Serra, responsável de comunicação e marketing da Penguin. “Os livros mais comerciais, por exemplo, costumam incluir blurbs de figuras importantes ou menção a recomendações feitas por clubes como o da Oprah Winfrey, que é uma coisa que os designers não gostam muito, mas que pode influenciar vendas.” Às vezes, também se investe em campanhas focadas na interacção com os leitores, a quem é dada a oportunidade de escolher entre duas propostas de capa. “É uma estratégia e não é para todo os tipos de livro.”
A solução gráfica é geralmente pensada caso a caso. Depende do género, da temática, do autor. Rui Garrido, director de arte da LeYa, explica: “Investe-se sempre muito nas capas dos vencedores do Prémio LeYa. A de As Pessoas Invisíveis, de José Carlos Barros, foi toda desenhada por mim. E há sempre muita gente a opinar, o que não acontece com obras das quais não se espera tanto. Nesses casos arrisca-se mais, porque as vendas não são tão importantes. Mas, quer dizer, há livros fantásticos com capas terríveis, e também há o contrário. Não convém ser uma prima donna e achar que fizemos uma coisa intocável.” Diplomacia e jogo de cintura são os dois ingredientes essenciais na hora de defender a sua visão, afiança Rui. Para a directora de arte da Tinta-da-China, Vera Tavares, não é bem assim. O caminho está, de certa forma, mais desimpedido.
O trunfo (e a luta) da tipografia
“Estava a trabalhar numa agência quando me desafiaram a criar o logótipo e, depois, a capa do primeiro livro editado, O Pequeno Livro do Grande Terramoto, de Rui Tavares”, recorda Vera, que está à frente do design da Tinta-da-China desde que a editora nasceu e sempre beneficiou de liberdade artística, por um lado, e de compatibilidade de gostos com a directora editorial, Bárbara Bulhosa, por outro. Decidiu logo fugir dos bancos de imagens e das fontes prontas, desvenda. “Comecei a desenhar eu os letterings, que também é uma marca que nos diferencia.” A par do papel colorido, das molduras e das ilustrações depuradas, que são resultado do que chama “uma economia de meios”, que contrasta com a qualidade dos materiais de produção. A ambição era (e continua a ser) provar que se pode ser comercial com uma linguagem diferente. “Nem sempre tive tantas certezas, agora é diferente. Só costumo perder imenso tempo com o desenho das letras.”
Não é a primeira vez que a tipografia vem à baila. Além de Vera, Rui Garrido também nos confidenciou a sua predilecção. E não são os únicos. “Faz diferença ter conhecimento da história do design em geral e da tipografia em particular”, sentencia João Bicker, que faz capas desde os anos 80, muito antes da fundação do atelier Ferrand, Bicker & Associado (FBA), onde trabalha com editoras como a Almedina ou a VS, de Vasco Santos, com quem já tinha pensado a Fenda, entretanto extinta. “As fontes têm significados, porque sabemos quando e por quem foram desenhadas”, esclarece, antes de lamentar a intromissão de quem não é especialista. “Toda a gente dá opinião sobre o design, incluindo e cada vez mais os departamentos de marketing, que sabem pouco e metem-se muito. E o design não tem ganho nada com isso. É frustrante quando de repente tenho um miúdo a dizer-me ‘isso não funciona’. E só me apetece dizer-lhe ‘eh pá, pergunta lá ao teu pai se funciona ou não’.”
Há quem diga que os gostos não se discutem. Mas, no que toca a recusar ou a aprovar uma capa, convém justificar. João Bicker não cede nesta questão, e diz que os bons clientes fazem metade do design porque sabem o que querem e pedem sem exigir desde logo determinadas soluções gráficas. O editor Francisco Camacho, da LeYa, não podia concordar mais. “Temos de ser o mais assertivos possível. E, depois, dizer só ‘gosto ou não gosto’, a alguém que é especialista na matéria, vale pouco. Por exemplo, se calhar a letra é demasiado nobre para o tema ou, pelo contrário, não está à altura e convinha ser serifada. E estou a falar de fontes porque a maior parte das pessoas acha que uma capa vive essencialmente da imagem, mas há capas que sobrevivem – e muito bem – só com tipografia.” Francisco não dá exemplos, mas lembramo-nos das recentes edições da Porto Editora dos livros de José Saramago, pensadas pelo premiado atelier Silvadesigners, que convidou pessoas conhecidas para caligrafar os títulos com um marcador Tombo preto. É, curiosamente, o mesmo atelier que fez as capas para a colecção de bolso BIS, da LeYa, com uma tipografia camaleónica e ilustrações a preto e branco.
“O design assenta sobretudo em três pilares: na imagem, na tipografia e na composição dos primeiros dois”, remata Ana Boavida, da FBA, que tem publicada uma tese sobre capas de livros e o design gráfico em Portugal dos anos 40 aos 70. Depois de analisar centenas de capas para a escrever, descobriu que a tipografia funciona como azimute. “O Sebastião Rodrigues [considerado o pai do design português] resolveu muitas capas só com texto, porque explorava a tipografia e estava atento a tendências, como o Saul Bass.” Agora, o panorama é desanimador. Quem o diz é Ana, e não está sozinha na sua opinião. “Há profissionais a fazer um bom trabalho, no sentido de dar ao livro dignidade e particularidade, e até de o valorizar enquanto objecto. Mas a grande maioria das capas é uma receita gasta, que já foi cozinhada e requentada e resservida vezes sem conta. Há falta de rasgo e de ideias. Seria bom que os portugueses em geral começassem a ver a diferença entre uma boa composição e uma coisa que foi mandada para ali de qualquer maneira.”
Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 659 — Outono 2022.
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