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‘Concerto N.º 1 Para Laura’ assinala os 30 anos de carreira de Sílvia Real

Em ‘Concerto N.º 1 Para Laura’, em estreia no São Luiz, a coreógrafa Sílvia Real mergulha no seu longo e valioso repertório.

Escrito por
Mariana Duarte
Concerto nº1 para Laura
©Sofia Afonso/ Real Pelágio 2021Concerto nº1 para Laura
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No início da pandemia, Sílvia Real teve de despejar um barracão “cheio de tralhas”. Tralhas de uma carreira de 30 anos, o mesmo que dizer de uma vida. Por lá encontrou memórias e materiais de “momentos bons e menos bons”, entre adereços, figurinos, cenários, fotografias, diários criativos, cassetes de música, cartas a parceiros artísticos. Nunca teve queda para revisitar o passado, mas este trabalho de limpeza e selecção que se impôs fê-la perceber que poderia construir qualquer coisa a partir dali. “De repente, os fantasmas dos meus espectáculos estavam a querer dar-me uma força”, diz a coreógrafa, performer e pedagoga, uma das figuras-chave da dança contemporânea portuguesa e co-fundadora da companhia Real Pelágio, juntamente com o músico Sérgio Pelágio, que cumpre agora 25 anos de actividade. 

Embalada pelo passado, mas com os pés bem assentes no presente, Sílvia Real iniciou um processo de pesquisa solitário em que foi tacteando novos sentidos e caminhos para aqueles objectos. Assim gizou Concerto N.º 1 Para Laura, espectáculo que se estreia esta quarta-feira no São Luiz, em Lisboa, numa co-criação com o coreógrafo Francisco Camacho, cúmplice de longa data. Inicialmente pensado para ser um solo, o formato rapidamente se estendeu quando a Real Pelágio foi repescada pelos apoios da DGArtes durante a primeira fase da pandemia. “Ao repensar o que estava a fazer, achei que seria imprescindível dar emprego a mais pessoas. Quis dar contratos de trabalho, o máximo que conseguisse, não só à equipa artística como à de produção.” 

O solo passou então a trio. Sílvia Real convidou Beatriz Valentim e Magnum Soares, dois jovens intérpretes que integraram o elenco de A Laura Quer! (2019), espectáculo do Grupo 23:silêncio! com adolescentes e crianças, públicos com quem a Real Pelágio vem desenvolvendo um continuado e sólido trabalho de formação e criação desde finais dos anos 90. De certa forma, Concerto N.º 1 Para Laura é um segundo capítulo dessa peça – não só pela coreografia feita a meias novamente com Francisco Camacho e pelo elenco, mas sobretudo pelas canções enquanto pavimento dramatúrgico, com interpretação ao vivo. A música sempre foi, de resto, um material de trabalho privilegiado de Sílvia Real, e este espectáculo é também “uma homenagem privada” à importância que as canções têm tido na sua vida. Tanto ou mais do que a dança. “Quando fui para Londres estudar dança durante cinco anos, na verdade a minha grande vontade era ir ver os concertos todos de punk e de rock”, confessa. “Além de, claro, ter todo o trabalho que desenvolvi e desenvolvo com o Sérgio Pelágio.”

As canções – de protesto, de amor, de embalar – são o fio condutor e o motor deste novo espectáculo, e foi também através delas que se forjaram afinidades e cumplicidades intergeracionais entre a equipa. “Uma das propostas do Francisco foi termos uma espécie de trabalho de casa sobre vários tipos de canções: uma canção para o fim do mundo, uma canção que fosse uma arma, a canção da nossa vida, etc.”, conta a coreógrafa. “Uma das canções da nossa vida, para todos, é ‘Construção’, do Chico Buarque. Encontrámos essa sintonia.” Através da música, Sílvia Real cita e revisita várias peças do seu repertório, como Pour Bien (1995) e Se Tudo Fosse Amarelo? (2015), sem tiques demasiado autobiográficos e entrecruzadas com textos e canções do presente, de “heróis e heroínas da música” que a têm acompanhado. A par deles e delas, surgem personagens femininas que foram povoando as suas criações, agora aliadas a perspectivas e referências feministas mais explícitas, mais interseccionais, mais politizadas, fazendo eco dos tempos.

“Não é por acaso que a maior parte das citações do espectáculo são de mulheres activistas, feministas, escritoras. Aqui entra o trabalho incrível da Simone Longo de Andrade, investigadora na área dos Direitos Humanos, que trabalha connosco há seis anos junto das escolas e não só.” A americana bell hooks, a brasileira Carolina Maria de Jesus e a indiana Vandana Shiva são algumas das autoras citadas. “Perante o que estávamos a viver, e perante o mundo catastrófico em que ainda continuamos, fez-me muito sentido incluir, juntamente com o arquivo, este trabalho mais político.” 

Para que os próximos 30 anos sejam melhores, dentro e fora do palco, numa área em que muito continua por fazer. “Além do crónico subfinanciamento das artes, continuamos neste impasse e nesta falta de visibilidade perante os políticos no que toca a acreditar que as artes são transformadoras. Que ao incluirmos as crianças e os jovens num trabalho directo e a fundo com artistas, e não de forma esporádica, isso vai tornar estas pessoas mais confiantes, mais criativas, independentemente de virem ou não a ser artistas”, afirma Sílvia Real. “Não vemos políticos nas salas de espectáculos, ou muito poucos. Se eles próprios não vão, como podemos fazer o trabalho de formação de públicos?” 

São Luiz Teatro Municipal. Qua-Sáb 19.30, Dom 16.00. 12€

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