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Estávamos em 2022 quando um livreiro anónimo, farto de aturar colegas e clientes difíceis, resolveu abrir uma página no Instagram só para desabafar. Em pouco mais de um ano, as Confissões de um Livreiro já atraíram uma comunidade de 17.300 pessoas. Zé Livreiro, assim baptizado por uma seguidora, não sabe se são as recomendações literárias, os memes espirituosos ou as histórias de puxar à lágrima. A verdade é que o número de fãs continua a crescer e alguns até já se conheceram na vida real, por conta do Clube do Livreiro, que criou entretanto no Discord. Mas ele, que se assume tímido, dispensa revelar o nome, a aparência ou o lugar onde vive. Nós, que o convencemos a aceitar um encontro, tencionamos levar o segredo para a cova. “É melhor pôr o casaco para as fotografias. Já me reconheceram por menos”, diz Zé, que veio vestido a preceito, de totebag ao ombro, com o retrato de Fernando Pessoa e a frase “Hoje não sei quem sou” a piscar-nos o olho.
É a primeira vez que põe os pés na Ler Devagar, em Alcântara. Se algum dia imaginámos que o livreiro atrás do balcão poderia ser ele, lá se foi o mistério, mas não faz mal, o que não faltam por aí são livrarias. Além disso, está de folga e decidiu passar a tarde na nossa companhia. A mulher, igualmente anónima, também. Para quem só agora se está a inteirar desta aventura, foi “a Maria do Zé” que, já cansada dos seus lamentos, o incentivou a sentar-se no divã das redes sociais. “Foi uma noite mal dormida, em que não aguentei mais, lembrei-me da minha mulher me ter mostrado o Café de Bairro [onde um anónimo fala da sua vida atrás do balcão de um café de bairro], e fui para a cozinha escrever uma publicação muito corrosiva”, admite, entre risos. “Agora, olho para os meus colegas como personagens nas minhas histórias. Penso ‘continua assim que vais lá parar’, e até acho que alguns desconfiam e só não me dizem nada por vergonha. Estão em negação.”
O que começou por ser um estratagema para descarregar o stress do dia-a-dia tornou-se, de repente, noutra coisa. Sem saber como, começou a recuperar o fascínio pelos livros, que alimentava desde miúdo e perdera algures. “Ainda eu não lia e já a minha mãe me tinha construído uma biblioteca no quarto.” Primeiro com os livros da Rua Sésamo, depois as colecções de Uma Aventura e Magic English, seguidas de Harry Potter, Eragon e outros heróis fantásticos que, já no secundário, o levavam a aproveitar os intervalos na biblioteca (os colegas gozavam com ele, mas ele continuava firme, porque havia uma infinidade de mundos por explorar). Nessa altura, por recomendação de um professor de filosofia, leu Herberto Helder e Franz Kafka pela primeira vez, e descobriu que os livros não servem só para nos confortar, também nos podem dar “socos no estômago”. “Devo muito do que sou aos livros, mas às tantas houve um desencanto. Há uma ideia romântica do que é ser um livreiro, mas trabalhar numa livraria é como trabalhar numa Zara, a diferença é que cheira a papel.”
Um plot twist atrás do outro
Este livreiro – cuidado com o queixo – nunca pensou nem desejou sequer vir a trabalhar com o objecto livro. Zé tirou um daqueles cursos que nos podem levar a uma carreira de fato e gravata. “Ainda cheguei a fazer um estágio. Mas, como não consegui arranjar trabalho na área, arranjei outro emprego, e calhou de ser livreiro.” Foi o primeiro grande plot twist da sua vida e, estava ainda longe de imaginar, mas a sua colega da altura deu-lhe a melhor dica de todas: “Ela disse-me ‘tens de arranjar um bloco, porque há muito maluco por aí’.” Dito e feito. Ao estilo da mítica Livreira Anarquista, que seguia com admiração no Tumblr, foi enchendo blocos de “pérolas”, desde pedidos estranhos (como aquele senhor que pediu para embrulhar os livros e a seguir desembrulhou tudo à sua frente) até equívocos absurdos (como as demasiadas pessoas que, “sacrilégio”, acham que os livros de bolso são resumos dos originais).
Agora, dez anos depois do seu primeiro atendimento, é nas legendas das suas publicações que, de vez em quando, pratica o exercício da escrita e, sobretudo, “o exercício da memória”. Muitas das histórias que partilha remontam ao tempo em que, com 15 ou 16 anos, comia um prensado de croissant misto antes de recusar convites para jogar matraquilhos e ir para a biblioteca com o seu Ucal e um livro fresquinho. “Quando comecei a página, até nem escrevia muito, mas depois pensei que tinha de pagar de alguma forma aqueles cadernos todos que tinha em casa. Há pessoas que nem lêem a legenda – as pessoas é que sabem –, mas o mais importante para mim é isso, é daí [dos textos mais longos] que retiro prazer do que estou a fazer”, confessa, antes de nos confirmar o que já sabíamos. “Depois do astronauta, do bombeiro e do homem do lixo, lembro-me de dizer à minha mãe que queria ser escritor.” Quem sabe se, um dia, não lhe compramos o seu próprio livro. Isso é que seria um plot twist.
A verdade é que já se sente uma espécie de escritor. “Ouvir audiolivros é consumir literatura. Se calhar, ler os meus posts também. Não me quero fazer mais do que sou, mas quero acreditar que estou a convencer algumas pessoas a gostar de ler. O Instagram é gratuito, toda a gente usa e é uma possível ferramenta de evangelização dos não leitores.” O que também é gratuito e põe cerca de 600 pessoas a ler todos os meses é o seu Clube do Livreiro, que a mulher sugeriu que ele criasse durante uma ida ao supermercado. Quando estreou, o clube tinha apenas 50 ou 60 participantes e o primeiro livro escolhido foi De Amanhã em Amanhã, de Gabrielle Zevin, depois de pôr a obra a votação com uma outra “com uma capa mesmo feia”. “Fiz de propósito para ganhar o que eu queria”, revela, orgulhoso da manha. “Entretanto, as regras mudaram.” Há um tema por mês e escolhem-se sempre dois livros em conjunto, que os participantes discutem por escrito, capítulo a capítulo, através de diferentes canais (não há voz nem câmaras envolvidas). Em Novembro, vão ler policiais. Em Dezembro, fantasia. Para o ano logo se vê. O importante é juntar pessoas. “No outro dia fui tagado numa story que dizia ‘fiz um amigo para a vida no clube do Zé Livreiro’. Fico contente por ser uma espécie de Henrique Mendes do programa Ponto de Encontro.”
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