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Cozinhas comunitárias e espaços para brincar: as novas cooperativas de habitação em Lisboa

Em cinco edifícios projectados para o Lumiar, Arroios, Benfica e São Vicente, os vizinhos formam cooperativas. Arquitectos antecipam esta nova – e talvez nada estranha – forma de vida.

Rute Barbedo
Escrito por
Rute Barbedo
Jornalista
Projecto para Rua António do Couto, Lumiar
Patrícia Rocha Leite + Jorge Miguel de Almeida Castro Trigo + A400Projecto para Rua António do Couto, Lumiar
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Em Lisboa, já não há cooperativas de habitação a crescer em terrenos públicos desde os anos 1990. Mas a crise actual ditou que se ressuscitasse o modelo, com adaptações, para aumentar a oferta de casas na cidade. Não se sabe se haverá interessados, mas há que tentar, conforme defendeu Filipa Roseta, vereadora da Habitação, em entrevista à Time Out. O primeiro projecto, no Lumiar, está pronto a avançar e será discutido em reunião de Câmara a 14 de Fevereiro.

Neste modelo, a autarquia cede o terreno, assegura os projectos de arquitectura e o licenciamento, e a cooperativa constrói. Os agregados devem ter alguma poupança (para dar de entrada) e conseguir a aprovação de um crédito (caso necessitem) para avançar com a obra. Um T1 andará à volta de 150 mil euros, um T2 na ordem dos 220 mil e um T3 perto de 290 mil. É, ainda, necessário enquadrar-se nos mesmos requisitos definidos para a renda acessível, ou seja, não auferir mais que 30 mil euros (em caso individual) ou 40 mil euros se for um agregado de duas pessoas (acrescem 5000 euros por cada filho). Erguendo-se o edifício, a cooperativa fica com um direito de superfície de 90 anos. 

Por outro lado, é preciso ter vontade de viver colectivamente. Para ser elegível, aliás, a cooperativa tem de apresentar um projecto social para o rés-do-cão do edifício, que viva em comunicação com a rua. “Queremos que as pessoas falem umas com as outras”, diz Filipa Roseta. E é aqui que começa o conceito de viver em comunidade.

Espaço para filhos e um pai supervisor

Em conjunto com Jorge de Almeida Castro Trigo e os projectistas A400, Patrícia Rocha Leite venceu o concurso para a Rua António do Couto, no Lumiar, e foi uma das arquitectas a pensar nesta nova forma de habitar a cidade. Uma vez construído, o edifício de 19 apartamentos vai funcionar com “uma espécie de condomínio em que a gestão é da cooperativa e aspectos como o apoio jurídico normalmente são gratuitos, porque são dados pela Câmara”, conta a arquitecta.

Projecto para Rua António do Couto, Lumiar
Patrícia Rocha Leite + Jorge Miguel de Almeida Castro Trigo + A400Projecto para Rua António do Couto, Lumiar

Para este bloco do Lumiar, o pressuposto definido pela Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU), que lançou o concurso público, foi o seguinte: “As fracções até podiam ser pequenas, desde que houvesse salas para os moradores se reunirem, um espaço de cowork ou uma área de lazer para crianças, por exemplo”. O cenário imaginado por Patrícia Rocha Leite é este: “Se todas as crianças saírem da escola às 17.00, em vez de se meterem em casa a ver televisão, podem ir para uma sala com livros e brinquedos, juntas e sob a supervisão de um adulto do prédio. Há um conceito de entreajuda, de partilha, que me parece muito saudável nesta ideia de cooperativa.”

No mesmo projecto, antevê-se também uma cozinha comunitária, “onde os moradores podem fazer almoços, uma festa de anos ou, na altura dos marmelos, juntar-se para fazer marmelada”, exemplifica a responsável. Utopia? “São coisas que podem nunca vir a acontecer, mas pelo menos estamos a criar as condições para isso, para coisas que fazem muita falta hoje”, considera Patrícia. Há ainda ideias como a de uma lavandaria social e benefícios ao nível dos encargos energéticos e de água para as famílias. “Não há 19 caldeiras, há uma caldeira central para todos. Também não há aquecedores individuais, mas duas bombas de calor. Já o controlo de consumos vai funcionar com contadores individuais. Sai tudo muito mais barato”, detalha. No exterior, conta-se com um logradouro, uma horta, fornos, barbecue e mesas, tudo comunitário. A SRU previu, ainda, outro detalhe fora do comum: “Das 19 fracções, há um T0 para visitantes. A ideia é a cooperativa fazer um calendário de disponibilidades e depois gere-se entre todos. Já que os apartamentos são pequenos, podem convidar-se amigos, família, e ficam nesse T0.”

O projecto de Arroios, no Largo do Cabeço da Bola, parte de premissas semelhantes. Dividido em dois núcleos, um total de 15 apartamentos enquadra-se nos seguintes espaços obrigatórios: cozinhas comunitárias, zona de horta, galerias de acesso às habitações e parque de bicicletas. “Entre os dois núcleos há um espaço público, que tem uma escadaria. Vamos preservá-lo e vai ser uma espécie de quarteirão colectivo. Temos muito interesse em fomentar esta experiência de habitação. Esta ideia não é nada comum e achamos que pode ter muito impacto no dia-a-dia das pessoas”, João Ribeiro, da corp arquitetos.

Projecto para Largo do Cabeço da Bola
corp arquitetosProjecto para Largo do Cabeço da Bola

Tal como nas restantes habitações cooperativas, o projecto foi pensado para estimular a ideia de “movimento comum”. Entre casas, cria-se uma “promenade, um caminho para ir ter com o vizinho”, explica João. Ao mesmo tempo, os apartamentos gravitam à volta do espaço exterior, uma espécie de jardim “fundamental” para toda a estrutura. E também haverá um espaço social no rés-do-chão, onde poderão acontecer diferentes projectos, idealizados em conjunto pelos moradores.

500 cooperativas até 2033

As cinco habitações cooperativas para Lisboa (além do Lumiar e Arroios, Benfica receberá um edifício e São Vicente dois) são as que estão mais perto de se concretizar, mas na Carta Municipal de Habitação, que define as políticas públicas nesta área até 2033, estão “identificadas 500 habitações em terrenos municipais para este efeito”, avança Filipa Roseta, que considera o modelo “prioritário porque desde os anos 90 que não se tem feito nada neste sentido”. Telheiras foi construída quase por inteiro desta forma e em Lisboa contam-se cerca de 13 mil casas enquadradas neste modelo. Mas a onda parou. Nesta nova vaga, havendo pessoas interessadas em financiar a construção e em viver em cooperativa, a Câmara Municipal de Lisboa mostra-se disponível para ceder esses 500 terrenos, espalhados um pouco por toda a cidade. Basta existirem interessados.

As cooperativas, como explica a arquitecta Patrícia Rocha Leite, “foram um conceito um bocado esquecido em Portugal, porque também caíram em descrédito”. Muitos dos projectos caíram ainda antes de serem licenciados, submersos no rolo burocrático, razão pela qual a Câmara decidiu, nesta fase, arrancar com o programa Cooperativas 1.ª Habitação Lisboa já com projectos de arquitectura aprovados. Mas noutros pontos da Europa, como os Países Baixos ou a vizinha Espanha, as cooperativas vivem agora um novo fulgor. “A cooperativa La Borda, que nasceu de uma iniciativa popular, é muito forte”, exemplifica Patrícia Rocha Leite. “Todas as fracções são diferentes porque resultam dos inputs dos moradores, criando-se uma grande diversidade e uma grande riqueza. Aqui não há nada disso. Nós desenhámos, mas não fazemos ideia de quem vai para lá morar”, descreve. Não é por isso, ainda assim, que o programa preliminar definido pela SRU deixa de ser “interessante, porque tem um lado muito social” e pode mudar a forma de ver a habitação em contexto urbano. “Às vezes perguntamo-nos por que não há mais cooperativas. Talvez haja outras prioridades, não sei. Mas fico com muita pena”, lamenta a arquitecta.

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