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Crónica: conversa de tasca em três lições

O currículo de José Margarido desenha-se em aulas sobre toalhas de papel e horas de estágio em balcões de inox. Dessa sebenta taberneira, retira estes ensinamentos para toda a restauração.

José Margarido
Escrito por
José Margarido
Crítico Comer&Beber
A Provinciana
Fotografia: Arlindo Camacho
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Creio que não resta em Lisboa uma só tasca digna desse nome. Explico. Tasca é o nome que damos a um estabelecimento modesto que vende refeições a preços recatados. Conheço muitos na cidade, mas nenhum se intitula assim. Quando se alcunha a si mesmo de tasca, taberna ou casa de pasto, um restaurante procura apropriar-se de uma certa ideia de autenticidade. Nada contra. Mas sublinho esta evidência: tasca é nome que nenhuma verdadeira tasca reclama. As tascas são, simultaneamente, lugares semânticos de afecto e de insulto, e nesse sentido oferecem uma lição sobre a maravilhosa incoerência do português. Adoramos a nossa tasquinha, mas chamamos tasco a uma bodega sem história, tasqueiro a um produto de fraca qualidade e tascoso a um pardieiro de higiene duvidosa. Se alguém arma baderna, perguntamos se pensa que está na tasca. Mas também aceitamos tasca como título de coisa fina.

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São outras, porém, as lições que importam. Penso nisto à mesa da Provinciana, paradigma desta categoria de lugares a que chamamos tasca, que vai além dos balcões de inox e das toalhas de papel e inclui qualquer estabelecimento de cozinha tradicional a preços de amigo. A cada vez que aqui entro, sinto que testemunhei um milagre às Portas de Santo Antão.

A Provinciana é um dos segredos mais mal guardados da Baixa e fica a dois passos da maior concentração de armadilhas para turistas desta cidade. Após um tempo de ausência, regresso numa destas terças-feiras. Para segurar mesa ao almoço, decido fingir que é um brunch e chego antes do meio-dia. Ainda assim sou sétimo numa fila que, antes da porta abrir, chega à vintena. É toda uma procissão de fiéis nativos, sem um estrangeiro para amostra. 

Ao jantar, o caso muda de figura. A fila acumula-se às 19.30 e a congregação é toda camone: enquanto os turistas vagueiam entre o Coliseu e o Rossio entre esplanadas very typical, os viajantes – espécie mais evoluída – costumam virar para a Travessa do Forno. Depois segue-se o passa-palavra digital e no dia seguinte outros viajantes chegam, em busca da proper portuguese tasca, 4,5 stars. Sem fotografias na ementa, sem angariadores à porta, sem tradições since 2015, sem pastéis de bacalhau a pingar queijo da serra.

Lição 1: ser genuíno.

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Para o português, a honestidade é uma coisa barata. Não quero com isto dizer que vale pouco – apenas que é uma virtude que se valoriza pelo preço. Exemplifico. Se dizemos que um vinho é honesto, falamos talvez de um vinho consensual, redondo, sem grande ciência, mas falamos certamente de um vinho barato. É honesto porque é bonzinho e não finge ser outra coisa; mas sobretudo é honesto porque, sendo o que é, até nem é caro. 

Aplica-se a receita aos restaurantes. Se descobrimos uma capelinha com comida bem feitinha e muito em conta, dizemos que o sítio é honesto. Em suma, queremos comer bem e à fartazana por tuta e meia – uma desonestidade da nossa parte, mas foi ao que estes lugares nos habituaram.

Numa boa tasca cozinha-se com produto barato, nunca com produto mau. Fígado, carapaus, mão de vaca, petingas, dobrada e por aí adiante – são muitos os exemplos de matéria-prima que pode ser boa sem ser cara. Há muita ciência nessa gestão de produto e as tascas deste país deviam ser uma cadeira obrigatória em qualquer curso de Gestão. São anos de conhecimento acumulado em negócios de estrutura familiar, quase doméstica, muitas vezes – como na Provinciana – apoiada na santíssima trindade da tasca: mãe na cozinha, pai ao balcão, filha nas mesas. 

Resumo da lição 2: ter qualidade. 

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Há uma certa fanfarronice na malta da tasca. O povo sente-se mais português quando bebe tinto a granel e encontra um conforto tribal a virar tachos enquanto maldiz os restaurantes da moda, mais os palermas dos gourmets, que não percebem nada disto. É uma espécie de pedantismo de coentrada. 

Partilho desse tique indígena e creio que ele se explica na carta da Provinciana. Hoje é terça-feira e, como se sabe, é dia de chanfana, da mesma maneira que ontem foi obviamente dia de cabidela, amanhã será garantidamente dia de mão de vaca, quinta há-de respeitar-se o dia mundial do cozido e no dia seguinte haverá bacalhau com grão, como em toda a santa sexta-feira desde o início dos tempos. Sempre bom, rápido e barato. E é na inabalável certeza da repetição que achamos conforto. 

Eis então a lição 3: consistência.

Todos os meses nascem mesas fenomenais em Lisboa, fatalmente nas mesmas moradas onde outras, meses antes, fizeram correr reels de tinta. Uma história nas páginas da Time Out pode despertar paixões de estreia, uma story de Instagram pode lançar multidões em trends – mas o segredo da longevidade está na consistência. E isso bem podem ir estudar para a tasca, onde as mesmas mãos repetem, anos a fio, os mesmos pratos, com o mesmo apuro e desembaraço. Ninguém quer voltar à mesa em que não foi feliz.

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