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Há uns meses fui fazer uma crítica de um restaurante-bar nepalês, com música ao vivo. Reservara com três dias de antecedência, para um sábado ao jantar, mas a mulher do outro lado do telefone desconsiderou o cuidado. “Pode vir às horas que quiser.”
Apresentei-me no estabelecimento cerca das 21.00. Ao chegar, o restaurante estava vazio, só duas mesas ao fundo, turistas enganados no roteiro. Questionei a empregada e ela explicou. “Os nossos clientes habituais trabalham ao sábado à noite. O dia mais forte, aqui, é a segunda-feira.”
Os clientes do Love Lisbon, no Martim Moniz, são quase todos imigrantes cozinheiros ou trabalham nas copas dos restaurantes de Lisboa. Para os portugueses poderem festejar ao sábado, eles não podem folgar.
A maioria dos imigrantes trabalha seis dias por semana, a entrar às 10.00 e a sair à meia-noite, tantas vezes a receberem o salário mínimo ou menos do que isso – em esquemas de turnos que a ASAE não vê.
São milhares deles, milhares de pessoas que estão a trabalhar quando os portugueses, os turistas e os residentes estrangeiros da Europa rica e dos EUA ocupam os restaurantes da cidade ao fim-de-semana.
Sem eles, não comíamos fora. A restauração de Lisboa fechava. E no entanto não os vemos. Não os conhecemos. Em muitos dos restaurantes de fine dining com cozinha aberta, arranjam-se esquemas para os pôr em preparações pré-serviço ou nas copas ou nas caves ou nos armazéns.
Mas sabemos que eles estão lá, no lodo, em frente aos fogões, com temperaturas tropicais, com as suas frigideiras em chamas ou acartando tachos, ou picando cebolas até os dedos ficarem calejados e não haver mais lágrimas nos olhos.
Nas entrevistas de emprego, poucos chefs lhes perguntam da família, do país de origem, como chegaram a Portugal. Mas quase todos os imigrantes da restauração têm uma história, têm uma viagem longa e dramática para contar. A sua resistência fez-se na dureza.
Um cozinheiro que conheci há uns anos, num restaurante de ramen de Lisboa, pagou 13 mil euros para chegar do Nepal à Europa. Treze mil euros costuma dar direito a voo em primeira classe e resorts de cinco estrelas – mas não no seu caso.
A viagem de Rajesh foi feita aos solavancos, quase um mês de aventuras e perigos. Primeiro parou na Tunísia, onde ficou sequestrado duas semanas, escondido num apartamento das autoridades locais. Depois apareceram os primeiros traficantes de pessoas, que o levaram a si e a um grupo de amigos para a Líbia. Na Líbia, viajaram pelo deserto numa carripana com motorista de metralhadora, 15 deles num carro de cinco lugares, entalados uns nos outros durante horas a fio. “Pensava que morria”, contou-me.
Um dos gangsters, depois, quis violar uma amiga sua. Outro roubou-lhe tudo, inclusive o telemóvel, mesmo antes de o despachar para um barco no Mediterrâneo com mais 500 pessoas a bordo.
Rajesh não foi um dos 3129 náufragos que morreram ou desapareceram nas fronteiras marítimas da Europa, mas à chegada foi detido num campo para refugiados, em Itália. Restava-lhe fugir. Mas para onde? Os amigos dispersaram-se pela Europa, arriscaram-se nos países ricos.
Rajesh sabia que só havia um rectangulozinho onde o deixariam ficar sem documentos: Portugal. Apanhou um comboio, depois um bengali foi buscá-lo à estação e deixou-o na Avenida Almirante Reis.
Sobreviveu a apanhar morangos em Coimbra, depois andou metido com subcontratadores de mão-de-obra no Alentejo, até acabar onde quase todos os imigrantes do Indostão acabam: na restauração.
Histórias como as de Rajesh há muitas, de uma dor insuportável, pesadelos que ressurgem nas horas vagas, tantas vezes nos dias de folga, quando têm tempo para a memória. Quando vemos estes imigrantes, estamos longe de imaginar o que os faz arriscar perder tudo – todas as poupanças, os amigos, a família, a vida – para chegar ao nosso país.
Os que cá conseguem chegar a salvo, ainda têm de abdicar de muita coisa. A maioria partilha apartamentos com demasiados inquilinos, quando não partilha a cama. Há dias, vi um autocolante numa parede da Rua do Benformoso que dizia: “Aluga-se cama: 250€”. Uma pessoa tem direito à cama até ao meio dia, a outra pessoa entra no turno da tarde até de madrugada – contaram-me.
Muitos, todavia, conseguem endireitar a vida. Têm a sorte de ter um chef ou um patrão respeitosos, que lhes dão condições e lhes reconhecem o esforço. Todos sabemos que há chefs que já não precisam de estar sempre nos serviços, porque há um imigrante que resolve, que aprendeu a fazer, que está sempre lá, que faz tudo bem.
Sem estes imigrantes, a hotelaria do país dos últimos dez anos teria parado. As autoridades sabem isto, os restauradores também. Mas é preciso reconhecê-lo publicamente.
O Martim Moniz e a Rua do Benformoso podia ser o sítio desse reconhecimento, uma espécie de Chinatown lisboeta – como as há noutras capitais do mundo – aqui em versão Indostão. É claro que é preciso dignificar e ter políticas activas para que isso aconteça. O Martim Moniz não pode ser o gueto dos imigrantes cozinheiros.
É preciso fiscalizar os alojamentos, ter policiamento – como no Rossio, como em Campo de Ourique –, não deixar o sítio à margem da cidade. E é preciso que quem lá esteja e que quem lá vá, seja de que nacionalidade for, cumpra com a lei e cuide dos locais públicos.
A câmara municipal tem uma palavra nisto. Está na hora de ela liderar essa homenagem que a população lisboeta lhes deve. De os proteger.
Que se faça uma estátua ao cozinheiro imigrante, que ela seja bonita e se instale no nosso Indostão. Que não se deixem estas pessoas sem uma palavra, sem um apoio. Que elas estejam obrigadas à lei, como qualquer outro cidadão, mas que se trabalhe contra a marginalização. Que quando chegue o Inverno, e a hotelaria encolha, se perceba que a miséria espreita e o desemprego também e com isso podem vir outros problemas.
Aproveitemos quem nos traz diversidade e empenho. Aproveitemos o seu sorriso, os seus aromas e os seus sabores.