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Crónica: Um país que desconhece um guia e um guia que desconhece um país

O crítico da Time Out Luís Monteiro faz de psicólogo e coloca a relação entre Portugal e o Guia Michelin no divã. Esta é a crónica de uma relação complicada.

Escrito por
Luís Monteiro
Michelin Portugal
CARLAPIRES
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Nós, os portugueses, somos os melhores em tudo. Naturalmente, temos a melhor gastronomia do mundo e os melhores produtos. Só não temos o reconhecimento que merecemos... Foi assim, mais uma vez, que tantos se sentiram na primeira Gala Michelin exclusivamente portuguesa. As expectativas eram (erradamente) enormes e a realidade foi magra face a essas expectativas. Responsabilidade nossa ou responsabilidade da Michelin por as ter, incluindo na cerimónia, alimentado e não as ter, depois, correspondido? Portugal tem uma relação conturbada com o Guia Michelin: ansiamos pelo seu reconhecimento, mas como ele nunca é o que achamos merecer, desvalorizamo-lo publicamente para logo voltar a desejá-lo. É como aquelas relações passionais desequilibradas em que um dos amantes passa o tempo a queixar-se de ser maltratado pelo outro, mas em vez de o abandonar fica cada vez mais apaixonado. Muitos esperavam que esta primeira Gala fosse o momento em que a Michelin correspondesse finalmente à paixão portuguesa. Não aconteceu. O Guia foi simpático, mas não entusiasta. Mais do mesmo.

Como em tantas relações complicadas, há uma incompreensão mútua. Os portugueses ainda não perceberam a Michelin; a Michelin ainda não percebeu Portugal. Mas esta incompreensão assenta também provavelmente em ambos não saberem exactamente o que querem. A gastronomia portuguesa tem uma cultura e tradição fortes, mas nunca se conseguiu projectar internacionalmente porque sempre tratou a sua identidade como algo a preservar mais do que a valorizar. A tradição é frequentemente tratada entre nós como um limite em vez de uma oportunidade, como um travão à criatividade em vez de inspiração. Tem vindo a mudar, mas a verdade é que o modelo de gastronomia de que a Michelin gosta continua a ser pouco valorizado em Portugal. Para a Michelin ainda não somos suficientemente Michelin. E os portugueses ainda não gostam suficientemente da gastronomia Michelin...

Mas a Michelin também está numa crise de identidade. Nasceu e ainda se apresenta sobretudo como um Guia, mas é hoje também um prémio e um evento. São os Óscares dos chefs. Tem tanto de guia de restaurantes como de ranking de chefs. E, no entanto, são coisas diferentes que geram expectativas diferentes. Não é possível corresponder de forma igual a diferentes expectativas.

Ao mesmo tempo, o Guia também se globalizou, mas de forma incoerente e assimétrica. Por um lado, continua a reivindicar uniformidade de critérios em todo o mundo. A tese é de que, para ter a confiança dos consumidores, tem de ser igual em todo o mundo. Por outro lado, quem conhece os restaurantes Michelin em diferentes regiões do mundo sabe bem que o critério da estrela varia de forma muito significativa. Isto até faz sentido em abstracto: uma cozinha que merece ser conhecida, valendo um desvio ou viagem (para usar a classificação Michelin) pode – e deve – variar de forma significativa consoante o país, a cultura gastronómica local e os seus produtos. A Michelin apresenta cinco critérios de avaliação: produtos, sabor, técnica, personalidade e identidade da cozinha, consistência. A forma como isto se exprime pode variar consoante a cultura e o território em que esse restaurante se insere. Consequentemente, os restaurantes que merecem estrela Michelin podem e devem ser diferentes. Só sabemos se os produtos estão a ser valorizados se conhecermos bem os produtos desse território. Só conseguimos avaliar a personalidade da cozinha de um chef ou as técnicas que usa se conhecermos bem a tradição e a cultura em que se insere. Um guia global tem de ter em conta que esses critérios de avaliação se exprimem de forma diferente em diferentes países.

O problema é que o Guia pratica isso nuns países, mas não noutros. Há países em que vemos o Guia a fazer esse esforço de adequação e outros em que parece aplicar um padrão ignorante da realidade e contexto em que está. O Guia deve orientar os consumidores para restaurantes portugueses que usem caviar, foie gras e trufa ou deve, pelo contrário, penalizar isso pela pouca relação com o nosso território e cultura e a menor personalidade que isso exprime? Diria que o próprio Guia não sabe. Não sabe bem o que quer ser enquanto guia global: aplicar o mesmo padrão de gastronomia e cozinha em todo o mundo ou adaptar-se e conhecer em profundidade as diferentes culturas e territórios em que exista?

Como em todas as relações complicadas, de amor e ódio, a relação entre Portugal e o Guia Michelin só vai melhorar quando cada um decidir melhor o que espera de si mesmo. Nós temos de decidir se queremos valorizar a gastronomia que um Guia Michelin reconhece. O Guia Michelin tem de decidir se quer ser genuinamente global, começando por conhecer verdadeiramente a nossa identidade gastronómica. Neste momento, ambos esperam mais do outro do que estão disponíveis para o conhecer...

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