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Durante três dias, mais de duas dezenas de designers esboçaram a sua versão do próximo Outono-Inverno. Já lá vai o tempo em que a estação era dominada por casacos pesados ou peças de abrigo. Elas continuam lá, mas as propostas dos criadores têm sido bem menos previsíveis. Uns dão largas à criatividade fazendo da manipulação dos materiais a sua maior singularidade, outros apontam já a mira ao regresso ao trabalho, mesmo que ainda haja todo um Verão pela frente. Há ainda nomes que vão além da roupa e usam a moda como apelos à reflexão – sobre o actual contexto político ou sobre o consumo voraz dos nossos dias.
Durante três dias, centenas de peças – umas mais facilmente usáveis do que outras – desfilaram no Pátio da Galé, mas também no CAM. Propostas mais realistas ou aspiracionais do que poderemos estar a vestir daqui a seis meses, mas que também permitem medir o pulso à criatividade nacional. Caso a 64.ª edição lhe tenha passado ao lado, eis os destaques a reter.
1. Levarás a moda para todo o lado – até para o museu
Foi o que aconteceu nesta 64.ª edição da ModaLisboa. Coube a Constança Entrudo inaugurar o calendário, na sexta-feira, ao final da tarde, com a colecção “Second Best”. Em vez da passerelle do Pátio da Galé, a designer portuguesa ocupou a sala multiusos do Centro de Arte Moderna da Gulbenkian (em Outubro, apresentou-se na sala de espectáculos Lisa) – um momento performático, com referências directas ao momento em que beldades, atletas e funcionários do mês sobem ao pódio para ocupar o honroso segundo lugar.

“É a maior colecção que já apresentei até agora. Isso é uma consequência do trabalho criativo e do próprio crescimento da marca. Estamos a expandir-nos para mercados diferentes, há mais procura de lojas e isso também pede mais variedade”, começa por partilhar Constança. Se o Japão e o México são mercados em ascensão para Entrudo – com os Estados Unidos a continuarem a representar uma fatia bastante expressiva das exportações –, Portugal tem também aumentado o interesse nas criações da designer, com o devido reflexo nas vendas. Sem um ponto de venda próprio, é em lojas multimarca como a Parlamento, em Lisboa, que a marca portuguesa se posiciona ao lado de algumas das etiquetas internacionais mais proeminentes do momento.
Aqui e ali, as novas peças exibem ornamentos inusitados – fitas entrelaçadas nas malhas, rosetas de tecido e vivos contrastantes. Em algumas delas, o já reconhecível trabalho de linhas foi substituído por outras manipulações, caso das fitas e malhas usadas para recriar texturas como a do veludo. Entre a emoção e a celebração, Constança Entrudo quis que o museu fosse também palco para a moda e abriu o espectáculo ao público, com ou sem convite.
2. Experimentarás e serás recompensado
O Sangue Novo é, por excelência, o palco das grandes experimentações. Cinco aspirantes a designers, alguns ainda a concluir formação, apresentaram, na passada sexta-feira, pequenas colecções, na fase final do concurso que distingue os mais brilhantes. Foram dois os nomes que se destacaram dos seus pares.
Duarte Jorge, cujas silhuetas negras e volumosas lhe valeram o principal prémio, pisou a passerelle com um imaginário próprio – ficções científicas, mundos futuros e realidades paralelas que habitam o digital. “Sempre gostei desse lado mais fantasioso, mais sci-fi, mas esta colecção em específico teve também muito a ver com o Blade Runner, com o Cyberpunk 2077, até com o Neuromancer, o livro. Fiquei fascinado por esse mundo e foi o que me levou a criar esta colecção”, resume. Tal como em “2112. Onyx District”, a abordagem artística do design de moda, com a manipulação das proporções e a exploração da plasticidade dos materiais, é o que vê no horizonte. Para já, Duarte tem um mestrado em Fashion Brand Management no IED Firenze e uma bolsa de 4000€ com que se entreter.

O outro vencedor desta edição do concurso foi Gabriel Silva Barros, o designer que em Outubro transgrediu as barreiras do vestuário masculino, contagiando-o com a excentricidade própria de um cabaret. “Devolta ao mar” foi a continuação dessa grande aventura que é desmontar o que um homem deve (ou pode) vestir, desta vez tendo os trajes despojados dos pescadores como base. A partir daí, foi uma viagem mirabolante por visuais teatrais, apoiados em tecidos de dead stock – com muitas lantejoulas e patchwork pelo meio.
“Sinto-me visto pela indústria, sinto-me visto em Portugal. Agora, vou dar um passo cada vez – vou continuar a aceitar encomendas, a fazer styling, projectos, o que vier. Se conseguir financiamento suficiente e me sentir preparado, vou ver onde isto me leva”, admite o jovem criador, fixado no Reino Unido. Para casa leva agora um estágio de três meses na RDD Textiles, em Barcelos, e uma bolsa de 1750€.
3. Voltarás sempre ao sítio onde foste feliz
Um sentimento que tem marcado o passo das sucessivas passagens de Diogo Mestre pela passerelle da ModaLisboa. No seu segundo desfile inserido na plataforma Workstation, o designer alentejano revisitou uma vez mais os anos de infância passados longe da cidade grande – ternura, inocência e rebeldia voltaram a estar presentes numa colecção onde as gangas reclamaram para si os holofotes, em contraste com as malhas de produção manual que a marca Mestre Studio continua a defender com unhas e dentes.

“Chegámos à parte do adolescente rebelde. Fui muito para o que me lembro da adolescência do meu irmão, de ver as calças de ganga largas, rasgadas, ali nos anos 90, início dos 2000. Então, é essa ideia do puto cool, com a roupa larga e as calças descaídas”, explica. Mas Diogo não esquece a ruralidade que o trouxe até aqui. Sobre a ganga, desenhou com brilhantes as ovelhas e nuvens que já tínhamos visto antes e trouxe ainda o burel, material de abrigo também com origem na pastorícia. Ao mesmo tempo que continua a trazer as suas raízes para a passerelle, o designer apostas cada vez mais em peças para produzir em série. Será esse o futuro do Mestre Studio, entre os caprichos da cidade e a pachorra do campo.
Viajar no tempo e regressar ao espaço. No Pátio da Galé, os designers projectam, mas também reflectem. Avançam e retrocedem as casas necessárias para atingir a tão desejada pertinência. Para José Manuel Gonçalves, o exercício criativo foi o mesmo que o levou a consolidar a marca Alves/Gonçalves ao longo das últimas quatro décadas – o contexto, contudo, foi totalmente diferente de tudo o que já experienciou. Pela primeira vez a solo, e de regresso à ModaLisboa (depois de vários anos no Portugal Fashion), valeu-se da manipulação dos materiais e de uma construção experimental do vestuário.

A morte do parceiro de trabalho – e de vida – colocou a marca em pausa. Uma pausa interrompida na passada sexta-feira, quando fechou o primeiro dia de desfiles. “Foi um ano difícil. Um ano para pensar bem no que iria fazer, se iria continuar ou não. Depois cheguei à conclusão: se vou recomeçar, vai ser em Lisboa”, começa por explicar José Manuel Gonçalves. Na sala de desfiles, o preto predominou, mas também muitas das técnicas e silhuetas que se tornaram emblemas da dupla. “Está lá a minha empatia pela transformação dos materiais, pela utilização de tecnologias novas, por registos de draping, por montagens de peças que se calhar nem eu sei como é que fiz. Foi nesse sentido que gostei sempre de trabalhar”, continua. Um regresso que não se resume a um acto único. José Manuel Gonçalves garante presença na próxima edição da ModaLisboa e diz que voltou para ficar “durante muitos anos.”
4. Terás sempre lugar para mais um casaco
O casaco é uma espécie de unidade fundamental no trabalho de Luís Buchinho. O peso pesado da moda nacional voltou a apresenta-se – ainda que tenha deixado um alerta: terá sido a última vez, antes de uma pausa que nem o próprio sabe quanto tempo irá durar. “Este foi o último [desfile]. Há um hiato, que eu já queria ter feito, e quero iniciá-lo”, declara o designer, minutos após o desfile do último sábado.
Aquele a que assistimos esteve para não acontecer, mas a perserverança dos alunos do primeiro ano de Design e Produção de Moda da Universidade Lusófona do Porto levou a melhor. “Foi uma forma de me motivar a fazer uma colecção que eu não queria fazer. Tive esta proposta da minha coordenadora, um convite para envolver os alunos em todas as operações. Estou habituado a trabalhar com muitos meses e com uma micro equipa. Ali tinha uma macro equipa e mês nenhum”, conta.

A experiência, totalmente nova para o designer que soma 35 anos de carreira, levou-o a mergulhar nos próprios arquivos e a resgatar silhuetas do passado. “Preparei um histórico enorme sobre a marca, apresentei-lhes metodologias e abri-me a sugestões. Quis que fosse um exercício que os pusesse, não só a trabalhar, mas também a pensar. Foi ligeiramente difícil e altamente comovente para mim. Acho que desenvolvi temas e metodologias que estavam completamente fora do meu alcance, a nível financeiro, logístico, técnico, comercial. Sem dúvida, o sonho comandou a minha vida durante muito tempo e deixei que isso voltasse a acontecer nesta colecção. E quando uma pessoa faz isso, acho que acontece um bocadinho de magia”, continua.
Ao abandonar o filtro comercial, Buchinho ganhou asas. Muitos dos elementos mais característicos do designer estão lá – a mistura de materiais, o diálogo entre o masculino e o feminino, a fluidez e a estrutura –, mas também houve espaço para surpresas, como as bocas de sino saídas directamente dos anos 70 ou vestido armado que abriu o desfile. Os casacos, esses, voltaram a ser o carro chefe da colecção. Os últimos antes de um intervalo que irá deixar o Inverno ligeiramente mais frio.
5. Viajarás sem sair do provador
A moda continua e continuará a ser um meio de transporte até outras paragens. Através de um detalhe, de uma peça de roupa, de uma silhueta, de um estampado ou textura, o voo pode ser directo. Para Ricardo Andrez, a viagem começou com um tecido que o levou para o Extremo Oriente. “Foi o início da colecção. Por ser um material delicado, uma linguagem que não é muito previsível em mim, foi um ponto de partida para fazer este mix entre oriental e ocidente”, descreve o designer. Lustroso, este padrão floral desdobrou-se em cores e peças, inserido na linguagem de streetwear que caracteriza o trabalho de Andrez. Os folhos, as gangas tingidas ou as camisas de riscas serviram de contraponto num amplo planisfério de referências. O designer usou ainda um veludo estruturado para “enriquecer a colecção” e pequenos apontamentos de pêlo, na exploração de uma feminilidade transversal.

Também Ana Duarte, da DuarteHajime, foi ao outro lado do mundo em busca de inspiração para o próximo Inverno. Voltou com referências da mitologia japonesa, aplicadas ao estilo da marca portuguesa, assente num streetwear de toque desportivo. Da paleta de cores fizeram parte o preto, o cinzento, o azul, o vermelho e o verde-menta.
6. Nunca mais te vestirás para o trabalho da mesma forma
Não é de hoje que o office core anda a pairar sobre as passerelles internacionais e para o próximo Outono-Inverno Luís Carvalho integrou esta tendência num guarda-roupa repleto que peças de alfaiataria para vestir uma espécie de repartição de finanças 2.0, um escritório extremamente elegante, inspirado no streetstyle de Wall Street dos anos 90.
Sem género, as silhuetas executivas exibiram blazers oversized, riscas de giz, macacões com lapela, vestidos e camisas de colarinhos perfeitamente engomados. Elementos sem género que reforçam a vontade do designer de esbater a segmentação das peças. “Cada vez mais construo as colecções sem género. Desenho fatos ou looks sem pensar se vou vesti-los num homem ou numa mulher e depois é que decido. Os materiais também são aplicados assim, mesmo quando estão mais associados a vestidos de cerimónia”, resume.

Uma vertente que não ficou de fora. Na verdade, Luís Carvalho contrabalançou a formalidade do vestuário corporativo com padrões florais e de zebra, pintando-a ainda com um verde ácido disruptivo e com peças fluidas que piscam o olho a ocasiões de festa. Afinal, a linha que separa o escritório da passadeira vermelha pode ser mais ténue do que se imagina.
Gonçalo Peixoto é outro dos que está a contar os dias para Setembro, altura de regresso ao trabalho e, consequentemente, de ajustar o armário pós-férias. Nas saias travadas e nos sobretudos de ombros largos, voltou a projectar uma mulher poderosa, ainda que seja entre o brilho das lantejoulas e missangas e a transparência das mousselines que o jovem designer se sente em casa. Sob o olhar atento de uma plateia de influenciadoras digitais, a interferência do office wear foi qb. Logo logo desfilaram os mini vestidos e bralettes, os casacos de pelo e as silhuetas de sereia.

O trabalho não dá folga a Gonçalo Peixoto. Com estúdio no Porto, o negócio vai muito além das duas colecções sazonais que apresenta na ModaLisboa “Normalmente, uma vez por mês lançamos peças. Estamos num sector em que temos mesmo que estar um bocadinho à frente e não deixarmos que seja só isto a definir o nosso trabalho. Estes drops vêm ajudar-nos a responder ao que as nossas clientes estão a precisar agora. Em Junho, querem roupa para ir de férias, vamos dar-lhes. Em Dezembro, querem roupa para o jantar de Natal, é o que vamos fazer. É uma relação muito próxima com as clientes e acho que tem sido a chave do sucesso da marca”, afirma o designer. Fala também de internacionalização, projecto que quer reacender agora com a mira apontada ao Reino Unido e aos Estados Unidos.
7. Passarás uma mensagem através da moda
Numa semana de moda, dificilmente a roupa será apenas roupa. Juntamente com a habilidade técnica e o impulso criativo, o espírito crítico dos designers leva-os a reflectir sobre o que os rodeia e, consequentemente, a entregar mensagens – mais ou menos encriptadas – na passerelle. O contexto político estará sempre em apreciação e o primeiro a puxar o assunto foi Nuno Baltazar, num desfile onde o preto predominou. Uma marcha fúnebre onde nem as lágrimas (através da maquilhagem) faltaram.
“Tem a ver com o momento que todos vivemos. Há semanas que vemos a pior pessoa do mundo cometer as piores atrocidades. É impossível ficar neutro. E a moda não pode ser uma bolha cor-de-rosa”, começa por alertar o designer, que regressou ao calendário de desfiles da ModaLisboa, após ter estado ausente nas duas últimas edições. Também o cenário português mereceu um voto de pesar por parte de Baltazar, da ascensão da extrema direita no parlamento às eleições legislativas iminentes.

Na colecção, com pouquíssimas interferências de cor, sobrou espaço para a combinação de materiais como os crepes, o tafetá, as sarjas ou o cetim, enriquecendo uma única peça com múltiplas texturas e movimentos. “Foi um prazer criativo. Mais do que desenhar, obrigou-me a um trabalho de mesa e de busto, de experimentar, colocar, mudar, alterar, refazer. Precisava disso. E muitos daqueles tecidos são retalhos de outras histórias, de outros vestidos, de outras pessoas. Sei de onde cada um deles vem e como convocá-los para uma outra narrativa.”
Quem continua a querer convencer-nos a reaproveitar em vez de comprar roupa nova é Bárbara Atanásio. A jovem designer da Workstation voltou a apresentar uma colecção bem alicerçada na estética grunge, com peças produzidas a partir de tecidos de dead stock, num styling tão caótico que quase nos faz acreditar que poderíamos replicar tudo aquilo em casa. O ponto de partida foi precisamente a loucura dos dias e o nonsense como garante de sobrevivência. “Acho que é a primeira colecção de Inverno em que não tive medo de carregar nos layers, sem medos. É até um pouco distópico”, refere.

Das camadas, sobressaíram uma minissaia colegial e um vestido curto cor-de-rosa. Não é a primeira vez que Bárbara chama a atenção para o poder do styling – mais do que um apelo à compra, quer que o seu trabalho inspire a reinvenção de peças que já existem. “Através do styling conseguimos tudo e estou a pensar naquela peça que está atirada lá para o armário e que se calhar só precisa de ser pensada de outra maneira”, defende.
8. Não fecharás com chave de ouro, mas com jóias de prata
A tradição cumpre-se, estação após estação. Dino Alves desfilou por último nesta edição da ModaLisboa, uma colecção hiper colorida que explorou volumes exagerados – silhueta estruturada que o criador remete para “o brutalismo, expressionismo e outros movimentos artísticos” –, e construções bem mais orgânicas, onde a elaboração dos tecidos em atelier definem a modelagem das próprias peças.

No topo do bolo estiveram as jóias de Kukas, criadora lisboeta que se mantém no activo desde a década de 60 e que completou dez dos looks do desfile com peças feitas maioritariamente em prata. Dotadas de rigidez e geometria, as jóias destacaram-se na passerelle. Lado a lado, os dois pioneiros encerram mais uma ModaLisboa, que volta ao jogo das antecipações em Outubro.
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