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Estávamos em Novembro de 1922 quando o arqueólogo e egiptólogo britânico Howard Carter descobriu o túmulo de Tutankhamon, no Vale dos Reis. Até então, nunca tinha sido descoberto um túmulo egípcio praticamente intocado. Um século antes, em 1822, o francês Jean-François Champollion já tinha anunciado o seu primeiro avanço na decifração dos hieróglifos da Pedra de Roseta, feito que viria a tornar-se na espinha dorsal da egiptologia.
Agora, em 2022, o rosto de Tutankhamon – uma peça em porcelana, produzida em França na década de 1970, e ligeiramente mais pequena do que a original, que se encontra no Museu Egípcio do Cairo – dá-nos as boas-vindas à nova exposição do Museu Calouste Gulbenkian, inaugurada esta sexta-feira e patente até 6 de Março. A proposta é percorrer mais de três mil anos de história egípcia para responder a uma única pergunta: por que é que alguns faraós são mais famosos do que outros?
“No início há uma dessincronia: não estamos no Antigo Egipto, mas a olhar para uma máscara de um faraó, que é apenas uma interpretação da célebre máscara funerária de Tutankhamon, que é efectivamente um superstar, um faraó que perdurou no tempo. Ele teve um período muito reduzido de vida, mas [a sua imagem] foi catapultada por um fenómeno extraordinário, que todos vós reconhecem e do qual todos vós são herdeiros, que é a imprensa livre dos anos 20”, diz-nos o director adjunto do museu João Carvalho Dias, que se juntou a Frédéric Mougenot na curadoria de “Faraós Superstars”.
São cerca de 250 peças – entre antiguidades egípcias, iluminuras medievais, pintura clássica, documentos e obras históricas, mas também vídeos, música pop, bens de consumo e publicidade do nosso tempo – da Colecção do Fundador, da Biblioteca Nacional de Portugal e de importantes instituições europeias, como o Louvre, o British Museum e o Ashmolean Museum. A exposição, apresentada recentemente no Mucem – Musée des Civilisations de l’Europe et de la Méditerranée, em Marselha, começou a ser projectada em 2019, mas a pandemia forçou um adiamento, que levou ao “feliz acaso” que é a sua estreia em Portugal acontecer no ano em que se celebram o centenário da descoberta do túmulo de Tutankhamon e os 200 anos da decifração dos hieróglifos.
À entrada, além do mais famoso dos faraós, encontramos – do lado esquerdo – uma tapeçaria provavelmente produzida em França para o palácio de Luís XIV, prova de que, até ao século XIX, o conhecimento acerca da civilização do Nilo se baseava apenas na Bíblia e na historiografia grega e romana. Faraós e outras figuras egípcias eram então representados com trajes, acessórios e até penteados semelhantes aos usados pelos imperadores romanos. A cena, uma das mais famosas do Antigo Testamento, retrata o confronto entre Moisés e um faraó.
O faraó da Bíblia não tem nome, mas personifica uma percepção acerca dos reis e rainhas do Egipto que foi sendo contrariada ao longo do tempo, à medida que figuras como Tutankhamon, mas também Khufu, Nefertiti, Ramsés e Cleópatra, renasceram na narrativa da História. Os próprios faraós procuraram fazer perdurar o seu nome no tempo, como prova uma mesa em pedra, de uso quotidiano, com inscrições dos nomes de diferentes reis e rainhas. A partir desta peça, que nos leva finalmente até ao Antigo Egipto, o percurso proposto segue uma ordem cronológica. “É esta a verdadeira antiguidade que abre a exposição”, revela João Carvalho Dias.
“Somos muito sortudos por termos aqui esta antiguidade verdadeiramente única, uma mesa de oferendas, na qual a família dos mortos ou os sacerdotes colocavam, geralmente, comida. Este conjunto de cartelas, que se encontra em toda a volta da mesa e na sua superfície, lista toda a sucessão de reis ao longo de dois mil anos. São os predecessores de Ramsés II [o terceiro faraó da 19.ª dinastia]”, esclarece Mougenot, conservador de cerâmicas no Palais des Beaux-Arts de Lille, em França. “[Esta peça] prova a existência de uma memória dos reis que governaram durante séculos e séculos", remata.
O legado egípcio foi perpetuado também através de construções colossais, algumas usadas como túmulos, como aconteceu com as pirâmides, marcos na paisagem plana do vale do Nilo. Entre os reis que as mandaram construir destaca-se Ramsés II. Foi responsável por instituir o seu próprio culto, por erguer maravilhas maravilhas como Karnak e Abu Simbel e por mandar gravar o seu nome em quase todos os monumentos construídos durante o seu reinado – a estátua de Sekhmet, a deusa com cabeça de leoa, construída no tempo de Amenhotep III, o pai de Akhenaton, é um exemplo. Como faraó que mais anos reinou, mais mandou construir e mais prole gerou, Ramsés II ficou conhecido como Ramsés, o Grande, e serviu de exemplo aos seus sucessores: os nove seguintes assumiram o seu nome ao ascender ao trono.
Se havia um esforço claro na preservação e culto aos reis e rainhas do Egipto, também se procurou erradicar a memória daqueles que não cumpriram o que era esperado de um “bom faraó”. “Um faraó é a encarnação dos deuses, que criaram o mundo de uma certa maneira e numa certa ordem. No momento da criação, o mundo era perfeito e o trabalho do faraó é mantê-lo dessa forma e passá-lo ao seu sucessor intacto. Para isso, ele precisa da protecção dos deuses: a sua primeira tarefa é garantir que os deuses estão contentes e vão manter o caos longe do Egipto. É essa a razão porque um faraó constrói templos, que são a casa dos deuses na Terra, e tem de fornecer esses templos com mobiliário e oferendas, como comida e incenso, que devem ser de qualidade e vêm muitas vezes de fora do Egipto”, conta Frédéric, chamando a atenção para a cabeça de Senuseret III em obsidiana (rocha vulcânica de cor negra), uma peça da colecção do Museu Calouste Gulbenkian, comprada em 1922, por sugestão do egiptólogo Howard Carter, a partir daí conselheiro de Gulbenkian para a maioria das suas aquisições.
Foi por terem cumprido o seu dever que Ahmés, a mulher Ahmés-Nefertari e o sucessor Amen-hotep I permaneceram na memória do povo como os fundadores do Império Novo e na forma de estátuas veneradas em templos. Já os “reis malditos” viram os vestígios dos seus reinados serem apagados. Foi o caso da rainha-faraó Hatshepsut, a primeira mulher a assumir o poder no Antigo Egipto; de Akhenaton e a sua esposa Nefertiti, que tentaram uma reforma radical da religião e do poder; e dos seus sucessores imediatos, como Tutankhamon.
Sim, há superestrelas entre os “reis malditos”. Entre as peças da exposição, encontram-se várias que foram deliberadamente destruídas, como um pequeno busto de Akhenaton, emprestado pelo British Museum. “Se olharmos para a parte de trás, temos uma inscrição com duas cartelas danificadas. Apenas o sol e o nome do deus Amon permanecem. São as cartelas de Tutankhamon, o que significa que queriam mesmo apagá-lo da história, o que é irónico, porque ele é o mais famoso”, afirma Frédéric.
A segunda parte da exposição é dedicada à influência de gregos e romanos na perpetuação de determinados faraós. Entre eles, Cleópatra. O seu suicídio lendário, por meio da mordedura de uma víbora, foi um dos temas de eleição dos artistas cristãos, que viam no episódio a oportunidade de pintar a carne nua, tão censurada, e a imagem de uma sedutora libidinosa, que encarnava os perigosos encantos do Oriente. Em contrapartida, no mundo árabe clássico, Cleópatra era considerada uma rainha sábia, defensora do seu reino.
Já a partir de 1822, com a decifração dos hieróglifos, a escavação de importantes locais arqueológicos e da campanha egípcia de Napoleão Bonaparte, tudo mudou. A egiptomania influenciou as artes e o cinema e levou à produção de joalharia, cerâmica, pintura e até mobiliário. Os meios de comunicação e os museus, em plena ascensão no século XX, também contribuíram para o regresso dos faraós, elevando-os ao estatuto de vedetas internacionais. O melhor exemplo será, porventura, o de Ramsés II, que se torna familiar nos círculos da egiptomania e do orientalismo de finais do século XIX. Mais tarde, com a descoberta dos templos de Abu Simbel, na década de 60, assume protagonismo mediático na imprensa e na televisão, já depois do próprio Egipto, nos anos 20, ter começado a promover os faraós como símbolos patrióticos.
É precisamente na última sala da exposição que constatamos a forma como os egípcios reivindicaram a sua herança faraónica (incluindo no futebol: a selecção nacional egípcia é chamada de “Os Faraós”), mas também como a cultura pop se apropriou dos grandes líderes da antiguidade. Rainhas como Cleópatra tornam-se símbolos feministas e da comunidade negra, que as reivindica como ícones, mesmo depois de representações como a de Elizabeth Taylor, em 1963.
“Os faraós, redescobertos pela egiptologia, tornaram-se acessíveis no mundo inteiro, através dos media, dos museus, dos livros de história, e foram reutilizados no cinema, na literatura, na música e nas artes, tornando-se ainda mais famosos”, remata Frédéric. “Começou a difundir-se a teoria de que os egípcios a viver em África eram africanos e, portanto, eram negros. Esta teoria teve um impacto enorme em África e na diáspora, porque se queria provar ao resto do mundo e em especial aos colonizadores que África tem um passado glorioso e deveria estar nos livros de história. Ainda hoje, temos rainhas afro-americanas do pop, como a Rihanna e a Beyoncé, a associar-se a figuras como Nefertiti.”
A exposição – enriquecida por uma programação paralela, que inclui workshops, oficinas de férias, um curso online, um colóquio internacional, um ciclo de cinema e uma exposição bibliográfica, entre outras iniciativas dirigidas a públicos específicos – constitui ainda uma oportunidade para reflectir sobre o núcleo de arte egípcia do Museu Calouste Gulbenkian e a relação que o colecionador estabeleceu com o egiptólogo Howard Carter. É ainda de destacar Egipto: A Longínqua Terra Próxima, um vídeo da investigadora e curadora Sarah Nagaty que, ao longo de oito minutos, explora o Egipto contemporâneo, comparando-o com o Antigo Egipto.
Museu Calouste Gulbenkian, Avenida de Berna, 45A. 21 782 3000. Até 6 Mar, Seg e Qua-Dom 10.00-18.00. 5€
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