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De uma pergunta a Celestino surgiu um livro de poemas

‘Caderno de Rua’ é um livro onde cabem poemas, testemunhos, textos livres, escritos por pessoas sem casa e que usam drogas. É lançado esta sexta-feira, dia 31, às 18.30, na editora Poets & Painters.

Rute Barbedo
Escrito por
Rute Barbedo
Jornalista
Caderno de Rua
DR | | Caderno de Rua
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É um livro, mas também um caderno e um testemunho. Caderno de rua foi escrito por mais de 20 pessoas, algumas sem casa, outras em situação de dependência química, todas com histórias particulares e coisas a dizer. Como esta: “Que eu tenha peso/ E medida/ Para ser justo”, escrita por Luís Celestino, o homem que deu nome ao embrião do livro.

Celestino é sem-abrigo e Rui Sousa, que pertencia à associação Poesia P’ra Todos, passava por ele na zona da Baixa. Por vê-lo a ler, perguntou-lhe se também escrevia. Não tinha como. Arranjaram-se então cadernos e canetas, para Celestino e outros por que não, se a ideia era boa? , e começaram a organizar-se sessões de escrita livre, umas no coração de Lisboa, outras na periferia. Era o Projecto Celestino.

“Demos os cadernos sem pedir nada em troca”, conta Diogo Guerreiro, presidente da associação que organiza sessões de microfone aberto no espaço Com Calma, em Benfica, e que dinamiza o Festival de Poesia de Lisboa. Umas vezes as pessoas desapareciam com eles, outras rabiscavam, desenhavam, dobravam. Outras, ainda, ficavam para escrever. Tudo durou cerca de seis meses, juntando-se os escritores aos mediadores uma vez por semana, no GAT-IN Mouraria, um centro de redução de danos para quem usa drogas, e na associação Crescer, na Amadora, que apoia pessoas em situação de vulnerabilidade, como as que não têm um abrigo.

Caderno de Rua
DRCaderno de Rua

“Estas pessoas conseguem encontrar apoio para as necessidades mais básicas, como comer, dormir, ter acesso a roupa. Mas nós percebemos, com este projecto, que estes espaços podem deixar de ser só espaços onde se come, ou ligados ao consumo, e ser locais de criação de comunidade”, analisa Diogo. Não que não se organizem actividades na vida normal daquelas instituições “estamos muito focados na base, sim, mas queremos dinamizar cada vez mais, ter acções relacionadas com a arte”, dá conta Andreia Pereira, assistente social na Crescer –, mas vir alguém de fora tira as coisas da rotina.

O interesse e o improviso

O que aconteceu, então, nas salas do GAT e da Crescer no segundo semestre do ano passado? Lançaram-se temas, exercícios, tempos, escreveu-se e leu-se. E “expressar vulnerabilidades com o outro faz com que passe a existir uma leveza e com que as pessoas se conectem”, resume Diogo.

“O início foi um bocado chato”, admite Inês Rochato, também da Poesia P’ra Todos, sem panos quentes. “Tivemos de entrar num processo de motivação, de nos adaptarmos ao tempo deles, conhecer as pessoas, criar exercícios.” Nem sempre deu resultado. “São pessoas imprevisíveis, que às vezes desaparecem. E no GAT era ainda mais difícil. O pessoal ia para consumir. Mas no final lá conseguíamos interagir.” 

Na Crescer, por exemplo, das dezenas de pessoas que passaram pelo projecto, “houve uns três que se mantiveram”, como o senhor Marçal. “Ele nem sempre queria ir às sessões, queria descansar. Mas tinha vontade de escrever e partilhou connosco os textos.”

Sessões de escrita com a Poesia P'ra Todos
DRSessões de escrita com a Poesia P'ra Todos

Marçal Cabral, 71 anos, conta que era professor, mas a saúde impediu-o de continuar a trabalhar. Em 2023, ficou sem casa. “Nunca pensei em chegar a uma situação destas.” Depois da morte do antigo senhorio, o prédio onde vivia foi vendido. “Os herdeiros arranjaram confusão connosco e puseram-nos na rua.” Ficou sem grande parte dos pertences, deixou de escrever. Onde o faria? 

Aos 69 anos, por outro lado, para onde se vai? A estação de metro do Oriente foi uma das paragens. “Havia alcoólicos, drogados, gente sempre a fazer barulho, a vomitar. E aí eu comecei a perceber. Comecei a perceber a fraqueza humana, a marginalidade. Foi isso que me inspirou a escrever, a chamar a atenção para isto”, explica à Time Out. Em suma, Marçal Cabral tem “os movimentos limitadíssimos”, mas não perdeu tudo. “Não me tiraram o interesse nem a capacidade de escrever.”

Também ficaram e continuaram nas páginas em branco a “malta mais ligada à música, ao rap e ao improviso”, pessoas que não queriam ou não sabiam como escrever e que ditavam, como Ana, que dedicou um poema ao seu cão Zeus. “Quem te salvou?/ Largaram todos, e fugiram/ Às 4 da manhã/ Estou Ricardo enfurecido./ ‘Zeus, vamos embora.’”

O livro como espaço social 

O Projecto Celestino “teve impacto nas pessoas”, lê, em retrospectiva, Inês Rochato. “No fundo, foi criar um espaço onde elas se puderam expressar sem julgamentos, perceber que têm um lugar para elas na sociedade, que se calhar podem ser ouvidas e ter uma oportunidade.” Mas “é um projecto que deve ser replicado”, acrescenta. São muitos, aliás, os que têm vontade de continuar.

Caderno de Rua
DRCaderno de Rua

Caderno de Rua é lançado esta sexta-feira, às 18.30, na Poets & Painters (e está a venda na página da editora, por 12,50 euros), que ofereceu o design e editou este livro-objecto, documento para guardar, observar e interagir – a última página, em branco, está pronta a receber um poema ou qualquer outro tipo de texto. 

“Quisemos dar visibilidade às pessoas e ao processo de recolha”, explica Pedro Pires, fundador da editora, enquanto fala das imagens dos cadernos, manuscritos, que vão aparecendo ao longo do livro mostrando emendas, desenhos, “situações heterogéneas”. Outro factor é o tamanho: é um livro de bolso, não para estar numa prateleira, mas para andar connosco. Um caderno que veio da rua e que pode continuar nela. 

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