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Era para ser um acto de proximidade, no máximo até Sintra ou Santarém, não muito mais. Mas assim que o projecto Álbum em Construção – que tem como fins a composição musical e a gravação de um disco – foi anunciado, as inscrições esgotaram. “Vêm sobretudo da Grande Lisboa, mas temos gente de Viseu”, dizem-nos da organização. Tudo se passa na recém-inaugurada residência universitária do bairro do Calhariz Velho, em Benfica, onde uma das salas acolhe conversas com artistas, ensaios, desabafos e battles, enquanto outra é estúdio de gravação, sob a batuta do produtor Niikology. Daqui, camada a camada, do beat à voz, sairão as demos, para depois seguirem para o ajuste final no vizinho Bairro da Boavista.
Outras batutas pegam-nas NBC e Valete, directores artísticos da iniciativa, integrada na “sociedade criativa” que surgiu da colaboração do autor de “Rap Consciente” com a Junta de Freguesia de Benfica (JFB), a Horizontal 360. Horizontal porque é uma “escola” (Valete dispensa a palavra) paralela onde não existem hierarquias, 360 pela amplitude de horizontes que abarca, das artes ao desporto, sempre em colectivo.
Como na Horizontal, que arrancou em Outubro com sessões todas as semanas em diferentes espaços da freguesia, também na construção do álbum, “a ideia é não impor a quem participa, mas ir ao encontro das necessidades e dos desejos de cada um”, conta Valete à Time Out. Na Horizontal, “fizeram-se já muitas talks, partilhou-se muito conhecimento”, mas “eles também queriam fazer, participar”. No geral, “eles” escrevem, fazem música e querem mostrar, mas “nunca foi tão difícil como hoje ter um palco”. “A internet está congestionada” e ser artista pode não chegar (de acordo com a MusicRadar, em 2024, houve mais música a ser lançada por dia que em todo o ano de 1989).

O que fazer? Continuar. Do álbum em gravação farão parte 20 a 25 músicas, cada uma com 15 a 20 participações. Uma espécie de “We Are The World” dos anos de 2020, multi-temas e multi-ritmos. “Inscreveram-se instrumentistas, produtores, poetas, rappers”, tudo. E vêm não só gravar como também ouvir artistas como Sérgio Godinho, Bárbara Bandeira ou Van Zee, nas 16 sessões programadas até Maio. “Ninguém vai sair daqui a saber tudo, mas vão, de certeza, sair daqui mais ricos. E vamos criar uma comunidade especial”, assegura Valete, sem pausas. “Agora o sábado é o grande dia da semana deles, em que podem vir fazer o que realmente gostam: cantar, escrever, gravar, interagir com outros artistas.”
Levam ainda injecções de adrenalina, como a que Valete teve aos 16 anos, quando participou num workshop com Gutto, Boss AC e Carlos Martins. “O Boss AC era o meu ídolo e foi uma oportunidade para que ele me ouvisse. Aquilo mudou a minha vida.” Era também isso que queria que acontecesse aqui.
Do rap ao jazz
Isabel Gonçalves Lopes aka Bella Bellux, de 28 anos, chegou a passar, em criança, pelo coro de uma igreja e por uma filarmónica. Sem grandes avanços. “Não olhava para a música como algo que eu pudesse fazer. Achava que não era uma coisa para mim.” Até tudo ter mudado. “Não estava a passar por uma boa fase”, quando Valete lhe mandou mensagens a incentivar a ir à Horizontal 360. “Fui a bué talks e agora estou a fazer uma parte cantada no álbum. Além de estar a fazer alguma pop, também.”

Do outro lado, Maria Caetano Vilalobos, de 30 anos, raízes na poesia – “o meu avô escrevia fados” – quer intervir com a palavra através da música. Com a poesia, passou pelo Got Talent Portugal, e na companhia de uma loop station cria espectáculos a solo. “Em criança apaixonei-me pelo rap, Da Weasel, Valete... Depois conheci exemplos como a Capicua e percebi que nós também podíamos.” É o terreno em que se sente “mais em casa”, mas é um lote solitário, sabe disso. “Já colaborar numa gravação com rappers e músicos de outras áreas é novo para mim. Mas inspira-me, esta ideia de trabalharmos todos para o mesmo.”
Olhando à volta, para quem canta ou toca, 70% são homens, entre os 18 e os 40 anos, com graça também nas excepções. “Há aqui pessoas casadas, que já montaram a sua vida, a sua família, e que vieram gravar pela primeira vez. Criar coisas juntos não é algo que aconteça assim tanto em Portugal. Hoje, toda a gente quer impressionar toda a gente”, diz Niiko, o produtor.
Entre os músicos está também Kenny Caetano, de 28 anos, luso-angolano radicado no saxofone. “A música foi algo que passou de um hobbie para assumir como vocação.” Escolha difícil? “Um mix.” Continuou e desde então não tem parado. “Sou um nicho de mercado, andam sempre atrás de mim. Mas agora estou à procura do que quero. As minhas composições estão na gaveta e precisam de atenção”, partilha o saxofonista, embalado na onda de Valete. Para Kenny, o Álbum em Construção “tem o potencial de mudar muitas vidas” e é “o fazer acontecer do Valete”. “Ele vai atrás de nós e não nos deixa indiferentes. Desafia-nos. Viver é isto.”
No estúdio, Kenny faz-se “rapper com o sax”, como solta um dos presentes. Niiko orienta com os olhos, as mãos, a voz. “Não é para finalizar, a cena não está resolvida.” Fica-se até soar "como deve ser". No fim, vem a letra: “Juntos, somos juntos. Quebrando esses muros, nós é fortaleza. Se não vem forte, nem tenta.”
Leituras e conversas
Se aprender a fazer música é realidade de nicho ou não, a verdade é que a sala de Benfica, nestes dias meio jam, está sempre cheia. Na sessão de microfone aberto para leituras de poesia, a 15 de Fevereiro, apareceram quase 100 pessoas. Nove dias depois, as cadeiras não chegaram para os que queriam ouvir Sérgio Godinho e Profjam.

O público pergunta, expõe ansiedades, troca incertezas com os artistas que já andam nisto há algum tempo. Ser músico no tempo da juventude do autor de “Que Força É Essa” era outra coisa: sem redes sociais para alimentar, sem números, sem contagens. O momento em que se ganhava público eram os concertos. “Não há termo de comparação”, reconhece Sérgio Godinho. Os artistas, no entanto, não eram propriamente considerados profissionais a quem se devia pagar. “Lembro-me de, numa das minhas primeiras tournées, chegar a uma terra mais pequena e as pessoas ficarem muito admiradas porque tinha de se pagar bilhete. ‘Mas só para ver o Sérgio Godinho?!’”
“Os cânones vão mudando”, “a maneira como se propaga a música” também, “até na própria poesia as fronteiras são difíceis de definir”, observa Profjam. Como seria se o músico de "paz, pão, habitação" tivesse começado agora? “Acho que o Sérgio ia gostar do auto-tune”, brinca o rapper. “Talvez no Natal”, responde o artista do Porto.
A par do humor, as angústias. Muitas das perguntas vindas da plateia vão aos fins, ainda antes de passar pelos meios. Como criar uma base de fãs? Como sobressair no neo-cosmos da internet? Quanto exigem as agências e editoras? Como intervir e ser relevante através da música? “A questão da attention span, da falta de foco, é um problema real”, reconhece Sérgio Godinho. Ou, como diz Profjam, “a atenção nunca valeu tanto e tão pouco”. O que fazer? Continuar, como no palco. “Estás lá, a coisa começa e não há nada a fazer. Estás, de certa forma, a ser julgado e a dar o teu melhor. Mas vamos embora com energia renovada”, descreve o compositor de 79 anos.
Também Ricardo Marques, presidente da Junta de Benfica, levanta a mão para lançar uma pergunta: “Como ligar Abril aos jovens, que estão, se calhar, mais afastados da vida pública e política? Qual o papel da música nisto?” Respostas científicas: “Não podemos ser missionários, seguir uma coisa pedagógica. É dar o exemplo, e é preciso que as pessoas não tenham medo de criar e de pensar pelas próprias cabeças, não ir atrás de demagogos”, atenta Sérgio Godinho. “Intervenção é o que tiveres para dizer. Se não sabes o que dizer ainda, espera. Ouve primeiro”, complementa o rapper.
A agenda do Álbum em Construção continua até Maio, com o “cartaz” ainda por anunciar. Este mês de Março (depois da abertura com Bárbara Bandeira), poderão ouvir-se (sob inscrição) o músico luso-angolano Ivandro (dia 8), os conhecimentos sobre literacia financeira de Vita Malonga (dia 22) e o artista madeirense Van Zee (dia 29). No dia 15, sábado, há ainda uma sessão de escrita livre com o Poeta da Cidade. O álbum, depois de ser lançado em vinil e em formato digital, culmina com a actuação dos artistas no Festival Entre Portas, em Setembro.
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