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Não é fácil apanhar João Wengorovius. Hoje está aqui, amanhã pode estar em algum país da América Latina ou da Ásia, quase sempre à mesa, agarrado a um pequeno caderno e de caneta na mão. Depois de uma vida dedicada à publicidade, onde ainda vai fazendo umas coisas, João virou-se para a gastronomia, com uma liberdade difícil de encontrar. Sem que nada o fizesse prever, editou o livro We Chefs, com conversas com mais de duas dezenas de importantes chefs mundiais. Podia dar-se o caso de ter o trabalho acabado, mas acontece que quanto mais aprofunda, mais quer saber, quanto mais experimenta, mais há para descobrir. No meio, já não é nenhum desconhecido. E são bem apreciados os seus desenhos: não há prato ou restaurante que não fique registado nas páginas dos seus cadernos e que não acabem, eventualmente, por ir parar ao seu Instagram.
Quando se senta ao balcão do Kappo, o restaurante de alta cozinha japonesa que Tiago Penão tem em Cascais, a primeira coisa que faz, é tirar dos bolsos os pequenos cadernos. Sabe que há a expectativa que desenhe, mas recusa a pressão. “Temos de dar importância às coisas que as coisas têm”, diz. “Eu nem sei se sei desenhar. É uma coisa maluca que vai acontecendo organicamente”, continua, contando que tudo começou quando há uns anos decidiu sair da agência de publicidade que presidia, a BBDO, uma das maiores do país, para tirar um curso de cozinha. Não fez por menos: “Decidi que queria mesmo fazer uma pausa, sem grandes planos, e fui para a Alain Ducasse Centre de Formation, em Paris.” A ideia nunca foi tornar-se cozinheiro, nem nada que se pareça. Um privilégio, concorda, ainda que tenha sido uma experiência dura. “Eu fui para aprender. Só mesmo aprender.” E foi aí que percebeu que seria mais simples para si se as suas notas fossem desenhos. “No curso falavam francês e eu sei algum francês, mas de interrail. Mais depressa fazia um desenho do ‘agora entra a cebola, agora entra o pato e não sei quê’ do que estar a tentar traduzir tudo para português. Era prático.”
Hoje, essas continuam a ser as suas notas. Desenha cada prato que chega à mesa, dos mais simples aos mais complexos, não deixando detalhes de empratamento de fora. “Quando se usa a mão para desenhar isto é gravado na memória de outra maneira. Tem de se prestar atenção e o sabor é sobre prestar-se atenção, falo disso no meu livro. O erro que mais cometemos é engolir as coisas, em vez de saborear. Saborear implica prestar atenção ao que é que se está a passar na nossa boca, no nariz”, explica. Nas mãos de Tiago Penão, é com cuidado que João segue o menu omakase (110€).
Está mais do que habituado a menus de degustação – é na alta cozinha que se move, mas encara cada experiência com respeito e curiosidade. Uma curiosidade quase inquietante. É isso, na verdade, que está na origem de tudo. É claro que gosta de comer, é um apreciador, mas o que o trouxe para aqui e o que o levou a fazer o livro onde entrevista 21 chefs, entre os quais Ferran Adrià, Alex Atala, Massimo Bottura, Nuno Mendes ou José Avillez, foi a curiosidade por perceber o caminho de cada um. Ou melhor, “a construção de uma identidade própria”. “A identidade manifesta-se de formas muito diferentes. Há pessoas que têm uma identidade que é muito marcada pelo território, outras pela técnica, outras pela sua personalidade. E todas são válidas. A mim interessa-me é perceber que não sejam iguais, o mundo está muito parecido”, explica. “Eu estou a ir à gastronomia para ser um veículo de reflexão sobre a importância de fazermos coisas diferentes”, assume.
Talvez por isso os seus desenhos e o seu olhar se tenham vindo a destacar. “É uma coisa analógica num mundo em que é tudo digital, acho que o fascínio é um bocado esse”, aponta, sem saber ainda bem o que fazer com todo o levantamento que tem feito. We Chefs, à venda em wechefsbook.com por 90€, saiu em 2018. Cinco anos depois, a matéria multiplicou-se. “Tenho de decidir o que vou fazer. Tenho muito conteúdo, muita coisa interessante. Já muita gente me perguntou se publicava um livro só dos desenhos dos restaurantes, que era uma coisa um bocadinho fora do baralho. Não há muita coisa assim”, assume. “É uma experiência vivida, é feita in loco enquanto como.”
Como está sentado à conversa, João não se foca no traço como desejava. O desenho do restaurante deixa-o para o fim, numa mesa à parte. Até porque assunto nunca lhe falta. Ou melhor, as dúvidas nunca o deixam. Tem mais perguntas que respostas, sem qualquer cliché. No dia em que deixar de ser assim, procura outra coisa. “Há várias coisas interessantes a acontecer no mundo. Uma delas é ser um mundo multipolar. Houve [na gastronomia] o movimento francês, depois o espanhol, depois os nórdicos. Hoje é mais difícil situar as coisas assim. Há pólos de atracção espalhados pelo mundo inteiro. Temos um mundo um bocadinho mais colorido, mais rico.” Mas até aqui João mantém algum cepticismo: “A exposição a tudo isto é muito boa, mas se for física e analógica é melhor. A outra tem o risco de termos a sensação que absorvermos tudo e não absorvemos.”
“Vivemos num mundo de cozinha aberta. Um mundo onde vemos tudo o que se passa ali, e isto tem muito a ver com o balcão, é o suprassumo desta coisa. Passámos dos bastidores, das cozinhas lá em baixo, para as cozinhas aqui”, acrescenta. “Isto tem consequências muito interessantes. Significa que eu estou a olhar para esta equipa. E depois há o feedback que damos de forma imediata, sem ele ninguém vai para a frente”, diz João, sob o olhar atento de Tiago Penão, que não hesita em concordar. “Por exemplo, no primeiro niguiri que o João comeu, ele fechou os olhos. Essas coisas, ao longo da noite, vão-nos realizando pessoalmente”, diz o chef, para quem estar ao balcão é uma paixão, não tivesse também o Izakaya, ali ao lado, uma taberna japonesa, mais descontraída. Além disso, nos planos está ainda uma eventual expansão com mais dois restaurantes, sempre à volta da barra. “Esta proximidade com as pessoas consegue satisfazer-nos”, defende. “Eu acredito que o cliente tem uma energia. Se eu fizer o niguiri e vos der a comer é diferente de estar a montar um set up e alguém levar para a sala. Estamos a falar de uma coisa que eu gosto muito, eu tenho prazer em estar a explicar-vos”, sublinha.
Resta agora que apareçam mais balcões no fine dining. Em Portugal, João Wengorovius destaca o Euskalduna, o restaurante no Porto onde Vasco Coelho Santos recebeu a estrela Michelin, e o Marlene, de Marlene Vieira, junto ao Terminal de Cruzeiros. Refere ainda, em Londres, o Kitchen Table, do chef James Knappet, ou em Paris o Table de Bruno Verjus, ambos com duas estrelas Michelin. “É outro tipo de relação que se está a passar aqui. E eu acho que isso é o grande alimento desta gente, algum tipo de reconhecimento, isto é tudo uma indústria da hospitalidade”, conclui.
Avenida Emídio Navarro, 23 A (Cascais). 21 484 4122. Ter-Sáb 12.30-14.30/ 19.30-00.00
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