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Mundu Nôbu, em 2018, foi uma revolução. Dino D’Santiago (re)apresentava-se com uma música que se tornou, em menos de nada, na banda-sonora de uma Lisboa crioula que é mestiça desde sempre, e que só agora parece orgulhar-se disso (também por culpa dele). Mais do que isso, Dino tornou-se ícone de uma geração mais livre e sem preconceitos. Perante a adversidade, não baixa os braços. Nunca baixou. Nem parou. A Mundu Nôbu seguiu-se o EP Sotavento (2019), o disco Kriola (2020) e, por fim, Badiu, que editou no final do ano passado. É o trabalho mais honesto, franco, aberto, é Dino D’Santiago em toda a sua vulnerabilidade, já depois de ter sido pai, balanceado numa busca por um mundo mais equilibrado para o filho. É uma homenagem ao povo Badiu, que durante anos se viu obrigado a esconder no interior da ilha de Santiago, em Cabo Verde, mas é também um testemunho das suas lutas, que acabaram por levá-lo à terapia, e do tempo em que vivemos. É assim, despido, mas nem por isso sozinho, que chega ao Coliseu. Incrédulo tantas vezes por tudo o que lhe tem vindo a acontecer.
Dino, não é sonho nenhum, isto vai acontecer. A que é que sabe esta chegada ao Coliseu?
Não é sonho nenhum [risos]. Sabe a grande responsabilidade. Ainda agora estávamos aqui a entrar e eu pensei: isto parece mais pequeno quando venho ver concertos. Agora, que é o meu, já sinto o peso, o eco da sala, já observo os detalhes, já começo a pensar onde é que vou querer ver a minha família. Mas, ao mesmo tempo, nem consigo dizer que é uma consagração, sinto que é uma constatação do momento feliz que estou a viver.
Quão importante é chegar aqui?
É conseguir perceber que todos os sacrifícios valeram a pena. São poucos os que sabem o que aconteceu antes desta chegada. [Estou] desde 2003 nesta caminhada, foram quase 20 anos até pisar o primeiro Coliseu em nome próprio, porque já tinha cá estado, ou como convidado, ou com os Expensive Soul, ou como backing vocal. Agora, é assumir a responsabilidade que o público depositou em mim, porque sem o público não haveria sequer um Coliseu. Sinto que é o momento certo para viver tudo isto, já como pai pela primeira vez. Sinto que o legado que quero deixar, tendo um Coliseu agregado, ganha outra importância.
Esperavas o sucesso que o Mundu Nôbu teve?
Não desta forma. Quando me apercebi que o meu pai e a minha mãe gostavam muito do Mundu Nôbu, soube que estava mesmo alguma coisa a acontecer, porque era a geração que eu temia. [Eu pensava:] o que é que o Tito vai achar, o que é que o Dani Silva vai achar, o que é que a Celina Pereira vai achar. Eu estava muito reticente.
E o que é que acharam?
Adoraram. Tanto que até o Jair, que é um dos percussionistas mais antigos de Cabo Verde, disse-me: até que enfim alguém está a trazer-me alguma coisa para eu aprender. Isso deu-me uma força tremenda. Não é que tenhas de esperar essa validação para continuares, tens de fazer o que sentes, mas ajuda muito perceberes que, pelo menos, estás a construir e a trazer valor à Cultura, que não é só um exercício de auto-construção. E senti que mexeu com as novas gerações, mesmo o pessoal do hip-hop teve mais responsabilização em não reproduzir somente os beats americanos e a querer ir às raízes e trabalhar os nossos beats, com as nossas claves e a nossa mensagem. Isso foi muito importante. Enviaram-me mensagens a agradecer por essa coragem. Aperceber-me desta responsabilidade... Aí começa a minha desconstrução, quando senti que precisava de ajuda pelas questões da minha saúde mental, por bloqueios que trazia da minha formação religiosa, onde tudo o que pensasse fora da caixa era considerado pecado. Começo realmente a conhecer-me e sinto que a minha música melhorou drasticamente.
Censuravas-te?
Bastante.
Em quê?
Na forma como falava sobre o amor, era sempre de uma forma compassiva. Censurava-me no simples acto de sentir raiva, achava que era algo que vinha do demónio. Censurava-me no acto de ser ambicioso porque achava que era algo negativo. Censurava-me no orgulho, de sentir orgulho nas coisas que fazia, então desfazia-me de tudo o que recebia. Nunca soube receber um elogio, sentia-me sempre mal. Tinha que elogiar aquela pessoa logo a seguir, nem que fosse a roupa. É muito injusto teres de pagar tanto [por terapia], o Estado devia arranjar forma de nos ajudar porque dão-nos muitas ferramentas nas escolas, nas creches, na sociedade, e depois vamos ter de pagar muito para desconstruí-las. As ovelhas, apesar de serem todas parecidas, nenhuma delas é igual e nós caminhamos todos como iguais, mas somos igualmente diferentes. Hoje na “Utopia” [canção de Badiu] já temos essa mensagem: não tenhas medo de ser diferente, não há mal nenhum. Por isso é que todos temos uma impressão digital. Kriola bebe um pouco disso e o Badiu já sou eu a escalar, com o nascimento do Lucas. Não permitirei mais arrastar medos meus na criação do meu filho para que não cresça com um fantasma que não é dele. Às vezes, eles ficam com umas sombras tão nossas. Se tiveres medo de cães, nunca vais deixar o teu filho aproximar-se de um cão e o puto vai crescer com um receio que não é dele. Estou muito vigilante com a minha pessoa e muito observador em relação ao meu filho, estou a reaprender a andar enquanto ele aprende a andar.
Percebeste sozinho que precisavas de resolver a tua saúde mental? Ainda é um tabu.
É um tabu gigante. Tinha amigos que já tinham experienciado, mas mesmo eles tinham vergonha de dizer. Como é tabu falar do sexo, é tabu falar da saúde mental. Acho que é ainda pior.
Há vergonha porquê?
É logo assumir que estás maluco. Como é que está tudo a correr tão bem e agora estás a ir ao psicólogo? É precisamente por isso, por estar tudo a correr tão bem e não saberes aceitar o bem que te está a acontecer e não te conseguires sentir pleno e feliz. Alguma coisa tem de estar muito errada. A mãe do Lucas foi a pessoa mais importante nesse sentido, de me dar a coragem de lá ir. O Lucas nasceu e eu fiz o inverso do que dizia: “quando o meu filho nascer vou tirar um tempo para ele, já não vou estar sempre disponível”. Quase tripliquei [o trabalho], foi ridículo. Ela dizia-me que toda a gente me tinha inteiro e eles só me tinham a morrer no sofá, sem energia nenhuma, que não era justo. Foi o tiro [de partida] e agora, quando começas… Uau, já percebo porque é que ninguém quer vir para esta cena porque começas a bater de frente com os teus medos.
A entrevista completa pode ser vista na revista que chegou esta semana às bancas. Uma conversa que vai muito para lá do concerto no Coliseu, na qual Dino D'Santiago reflecte sobre o caminho para o sucesso e a terapia.
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