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Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 672 — Inverno 2025
Em O Quarto ao Lado, de Pedro Almodóvar, Damian (John Turturro) entra no recém-arrendado apartamento de Ingrid (Julianne Moore), em Manhattan, e observa: “Parece que esta casa foi mobilada com coisas vindas do lixo.” “Nem tudo”, reage a escritora. “E é preciso ter talento para escolher coisas do lixo.” Se Almodóvar, um dos cineastas mais meticulosos no que toca ao design dos espaços, à cor e à forma, pôs dois personagens a falar sobre a transformação dos restos em beleza e utilidade é porque estamos perante algo sobre o qual interessa pensar.
Nos Estados Unidos, cenário dos últimos dias da vida de Martha (Tilda Swinton), o stooping (“andar curvado” ou inclinado, na tradução literal) existe há décadas, tendo-se tornado particularmente frenético – com a ajuda das redes sociais e de milhões de visualizações – nos últimos anos. “Na página de stooping de Nova Iorque há coisas incríveis, de alto valor. É outro poder de compra, e outra escala. Em Barcelona ou em Londres, o universo também é outro. Mas cá, na verdade, há muito mais coisas e mais pessoas a aderir ao movimento do que eu esperava”, conta Francisco Villa de Brito, fundador da página de Instagram StoopingLisboa, designer gráfico e respigador de móveis e objectos curiosos.

Há quatro anos, o morador de Campo de Ourique criou o perfil por necessidade. Quando chegava a casa com mais um móvel, a mãe achava piada mas o pai já franzia o sobrolho. Em diferentes divisões, tem espelhos, cadeiras, candeeiros. “Um dos objectos mais marcantes foi uma cadeira Cesca. Encontrei-a com a palhinha toda rebentada, tirei um curso de empalhamento e arranjei-a… Sempre tive muito isto de encontrar coisas na rua e de aproveitá-las para mim. Mas tenho um certo pavor da acumulação.” Criou o perfil porque “não podia levar tudo para casa e achava um desperdício aquilo ser levado à uma da manhã pela Câmara”. Achou, no entanto, que ia ser apenas ele a publicar fotografias de móveis encostados à parede. Hoje, a página tem mais de 5000 seguidores e várias contribuições todas as semanas. O intuito é “dar uma nova vida às coisas encontradas nas ruas de Lisboa, através da partilha, em tempo real, da localização exacta”.
Ricos e falidos
A poupança é um dos motores para se andar atento à rua, especialmente junto a contentores. “Coisas bonitas, de boa qualidade, boas madeiras, design único e ainda por cima de graça”, como enumera Francisco, quem não as quer? Mas há outras motivações, da política à adrenalina.
Até 2014, ano em que foi criado o sistema de recolha diária dos chamados “monos” pela Câmara Municipal de Lisboa (CML), existia o “dia do lixo grande” ou “lixo bom”. Não era incomum ver-se, à noite, em bairros abastados como a Lapa ou o Chiado, grupos de pessoas não encapuçadas a cirandar entre o lixo, carregando cadeiras às costas ou em incursões de carrinha para recolher móveis e recheios, para venda ou para levar para casa.
“Mobilei a minha casa toda assim. Na altura não tinha grande dinheiro, dava jeito”, afirma João Duarte, publicitário. Para proteger o seu espaço de intimidade, preferiu não ser fotografado pela Time Out, mas conta que o sofá com “braços e pés à Olaio” que tem na sala, a televisão vermelha, o candeeiro de estilo nórdico ou a “réplica manhosa” de A Última Ceia vieram daqueles anos em que “o dia do lixo era a parte mais fixe da semana”. “Também houve os acasos, claro, como quando ia a passar na zona do Rato e encontrei um bruto cinzeiro de pé, em metal, à porta de um prédio. Tinha umas marcas de ferrugem, só era preciso tratar. E voltar a usar.”

Foi um acaso o que aconteceu a Bruno Nogueira, quando passou de carro por uma pintura a carvão “bonita”, junto ao lixo, apercebendo-se mais tarde de que era uma obra de arte. “Vi que aquilo tinha valor, a moldura… A assinatura tinha uma data por baixo: 1916. Então não é que era um pintor escocês (...) que tem quadros leiloados? (...) Malta, eu apanhei do lixo…”, conta o entertainer no seu podcast Isso Não Se Diz. A pergunta que se coloca é: como é que alguém deita isto fora? “A moldura estava encostada ao contentor, de frente para quem passava. Alguém queria que aquele quadro fosse levado”, indaga o autor, agora um confesso cidadão atento ao lixo dos outros. “Passou a ser o quadro que eu mais gosto de ter cá em casa”, admite.
Também Marta Cerqueira começou a recolher objectos da rua no tempo do “lixo grande”. “A primeira coisa foi um sofá, na zona entre o Rato e a Estrela, há uns 10 anos”, recorda. Desde então, não parou. “Quase todos os dias encontro alguma coisa perto de casa. Em termos de lixo, o meu bairro é incrível”, confessa, referindo-se à zona entre a Alameda e o Areeiro.

O que os outros, por alguma razão, deixaram de querer não é lixo uma boa parte das vezes, mas objectos à procura de nova vida, com algum trabalho de recuperação à mistura. “As pessoas deixam, claramente, as coisas para que os vizinhos possam ver se lhes interessa.” Mas a rua não é o único armazém de preciosidades da vida alheia. Para Marta, fundadora da plataforma Peggada, sobre projectos sustentáveis, todos os lugares são válidos para a troca e a reutilização. “Criei um grupo de bairro onde pergunto sempre se alguém tem o que preciso, para dar ou vender. Por exemplo, na escola do Zé (o filho de 3 anos), pediram para levar uma daquelas meias para pôr na árvore de Natal e eu pensei: ‘Será que preciso mesmo de comprar uma meia?’” Num grupo de doações do Facebook, a resposta chegou rápida.
Na mesma altura e da mesma forma, conseguiu uma árvore de Natal. “Teria custado cinco euros numa loja chinesa. Não é por aí. Mas fiquei contente por ter tido esta visão. A pessoa veio e trouxe enfeites, luzes, tudo. E ainda ficámos uma hora à conversa. Foi bom para as duas”, conta.

Olhando à volta, na casa de Marta, é difícil adivinhar o que foi comprado novo ou usado. “80% desta casa é em segunda mão”, dá conta. O sofá do filho, com um Mickey, estava à porta do prédio, a bicicleta e o autocarro londrino em miniatura, com passageiros de brincar, também vieram da rua. Há ainda livros, móveis, roupa, um carrinho de compras, um baú, um aquecedor, um aspirador, do lixo ou da casa de alguém. “Quando o meu aspirador avariou, encontrei outro passado uns dias na rua, a funcionar. As pessoas até já dizem que puxo estas coisas do universo.” Mas não é bem isso. “Tenho um olho clínico”, explica a ex-jornalista.
Importa ainda o dedo crítico. Para Marta, “não faz sentido estar a comprar tudo novo”. “Antes de ir comprar”, explica, “tento ver todas as alternativas possíveis, de grupos nas redes a mercados de troca, amigos… E não perco tempo da minha vida com isto. É só uma questão de olhar bem, estar atento, ter esse mindset.”
O lixo no espelho
Além do benefício individual e da consciência colectiva, há outro lado claro sobre o lixo: ele é o reflexo de como vivemos, imersos em matéria. Em Lisboa, todos os dias, produzem-se mais de 900 toneladas de resíduos urbanos, nas contas da autarquia. O tema é sensível, ninguém consegue gerir o excedente da cidade.
Já no que toca aos “monos” ou “monstros”, os reflexos são distintos, mostrando sinais como a mobilidade, a precariedade, os despejos, a passagem de nómadas por Lisboa ou os rendimentos de cada bairro. “Há uns cinco anos, tive um atelier na Lapa. Foi uma altura em que o bairro era habitado por muitos velhinhos, de classe alta… E havia casas inteiras à porta dos prédios”, lembra Francisco Villa de Brito.

Hoje, os avisos de “lixo interessante” que o designer gráfico recebe na caixa de mensagens do StoopingLisboa vêm sobretudo das zonas de Arroios e Penha de França. “Muitos dos que me escrevem são estrangeiros. Talvez pela questão da mobilidade, porque têm de deixar para trás muitas coisas. Também são zonas com muitas entradas e saídas de casas”, analisa.
No posto de Higiene Urbana da freguesia da Misericórdia, que gere os resíduos do núcleo duro da cidade, o eixo da Penha é tido como um dos mais “frequentados” por monos. “Móveis na Penha de França? É o prato do dia”, assegura Andreia Correia, cantoneira que acompanhamos numa ronda de recolha de monstros.
Na Quinta do Lavrado (antiga Curraleira), bairro municipal a que os próprios habitantes chamam de “buraco”, não faltam restos de sofás, contraplacado, gavetas, pedaços de madeira partida. “Este é um dos pontos críticos onde temos sempre de passar depois de uma ronda normal pelas recolhas programadas [depósitos de monos no espaço público, que são comunicados à CML através de plataformas como a Na Minha Rua]”, explica Carla Santos, encarregada operacional da Higiene Urbana, enquanto conduz a carrinha da Câmara.
Mais acima, na Graça, encontram-se cadeiras de esplanada, madeiras, uma televisão com comando e o aviso inscrito no ecrã: “Funciona!!!” “Voltamos cá mais tarde. Pode ainda alguém passar por aqui e querer levar”, comenta a responsável, ciente de que o momento em que um objecto entra na carrinha é o seu atestado de óbito. “Tudo o que recolhemos é destruído”, explica.
Todos os dias, o pólo da Boavista, que abrange seis freguesias e 124 trabalhadores, recebe “entre 100 e 150 pedidos de recolha de monos”. Numa semana, são mais de 500. Se alargarmos a toda a cidade, são cerca de 2000 registos todas as semanas, mais de 100 mil por ano. “O turno da noite é o que recolhe mais. Às vezes, quando chegamos de manhã, já não está lá nada”, descreve Carla Santos. Se para uns é trabalho, para outros, lá está, é talento.
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