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Quando decidiu trocar a vida na cozinha por uma vida no campo, o brasileiro Rafael Cardoso, também conhecido por Rafa Bocaina, não podia imaginar que dez anos depois estaria em Portugal a comandar uma viagem intensiva (e imersiva) ao território, sempre à volta do porco. É o porco que tem estado no centro de todo o seu trabalho, ele que se tornou o produtor com que muitos chefs contam na hora de brilhar à mesa. No Brasil, criou o projecto Do Rabo ao Focinho, que agora apresenta em Portugal, e no qual cozinheiros, produtores, investigadores e gastrónomos se encontram, ora à mesa, ora no campo, para que nada fique por dizer sobre o porco, a sua criação e o seu uso. De 9 a 15 de Fevereiro, há jantares no Pigmeu e n’O Velho Eurico, um almoço na Imperial de Campo de Ourique e até uma matança no Montado do Freixo do Meio, em Montemor-o-Novo. Sem medo de fanatismos.
“Do Rabo ao Focinho serve também para mostrar que o animal não é sacrificado em vão”, defende Rafa, via zoom, dias antes de partir para Portugal. “A pessoa precisa entender que a carne não nasce numa bandeja de supermercado e para isso é importante entender que o consumo da carne exige um sacrifício”, continua o antigo chef, que passou pelas cozinhas estreladas do D.O.M de Alex Atala, em São Paulo, e do Mugaritz de Andoni Aduriz, no País Basco.
Foi quando trabalhava neste último que, numa folga, despertou de outra forma para o universo do porco. Numa feira gastronómica dedicada a diferentes regiões de Espanha, viu o que achava só existir na zona onde cresceu, em Cachoeira Paulista, Vale do Paraíba. “Ao longe eu vi uma gamela e isso para mim era uma identidade regional muito minha. Vi o nome do lugar e vi que não era caipira. Aí já me arrepiei, mas quando cheguei perto da gamela e vi que tinha torresmos não queria acreditar. Que coisa maluca, eu achei que era só típico da minha região no Brasil, a minha avó fazia isso”, recorda. “Por aí comecei a pensar: quem somos nós, os caipiras? Uma busca pessoal que se tornou o meu ofício e que tem ganhado repercussão no Brasil”, explica, defendendo que “a cultura caipira é a mais importante do Brasil em alguns aspectos”. “É a mais importante em termos de abrangência territorial, vai desde o Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Goiás, parte de Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul. Há mais território do Brasil sob a influência da cultura caipira do que da cultura amazónica, da cultura gaúcha ou da cultura nordestina. Há um pedaço maior do Brasil connosco”, contextualiza.
Para Rafa Bocaina, o porco é também um meio para contar esta história, ou para a valorizar. “Durante muito tempo, chamar-se caipira era algo pejorativo. Hoje, isso mudou. Há um orgulho”, assegura. E isso deve-se também ao trabalho que o próprio tem vindo a desenvolver. Na fazenda, onde também tem a sua charcutaria, os porcos de raças autóctones pastam livremente e têm uma alimentação cuidada. “Eu costumo dizer que embora eu tenha deixado o ofício diário de cozinheiro, hoje, trabalhando como produtor rural e criando porcos e fazendo aqui o meu trabalho, fazendo os meus enchidos, eu me sinto mais cozinheiro que nunca. Houve uma conexão a uma ponta fundamental da cadeia gastronómica que quando me mudei para cá não estava na moda, não estava em alta como está hoje.”
É essa mesma conexão que o traz para Portugal, até porque não é possível estudar a fundo o porco no Brasil sem fazer uma ligação aos portugueses que chegaram ao Brasil. “Todas as nossas raças autóctones – são 13 as registadas –, descendem originalmente do porco alentejano e do porco macau. Alguns são uma cópia do porco alentejano de tal forma que eu duvido que um criador português fosse capaz de diferenciar olhando para o animal”, aponta, explicando que por mais semelhanças aparentes, a carne acaba sempre por se distinguir. “O porco imprime na sua carcaça, talvez mais do que qualquer outro animal, as características do território e do manejo.”
Um super sucesso
“Eu sempre tive uma demanda de visitação e de cursos e treinamentos e nunca tive tempo para poder fazer esse tipo de coisa e sempre me senti um pouco em dívida para com os meus clientes, os meus seguidores e por isso desenvolvi este Do Rabo ao Focinho. Aconteceu pela primeira vez no ano passado e foi um super sucesso”, acrescenta. Quando teve a ideia de fazer o mesmo em Portugal, com a ajuda da investigadora e gastrónoma Carla Spironelo, brasileira a viver em Lisboa, e em parceria com a consultora de gastronomia Joana Munné, a adesão foi de tal forma surpreendente que as vagas acabaram preenchidas por pessoas que vêm de propósito do Brasil – entre as quais estão, por exemplo, as chefs Bel Coelho e Mara Salles. “Nós esperávamos 15 alunos e acabámos recebendo 15 professores. A adesão é de gente muito importante”, diz Rafa, ainda surpreendido. “É um grupo de especialistas, no final de contas. Deixa de ser um programa de transmissão de informação de mão única e é um grupo onde isso acontece de forma multilateral.”
André Magalhães, da Taberna da Rua das Flores e do Quiosque de São Paulo, fará as boas-vindas ao grupo na Manja, em Marvila, seguindo-se um programa que terá, provavelmente, o seu auge na Herdade Freixo do Meio, de Alfredo Sendim, com a matança do porco, mas não sem haver aulas que tanto podem ser com o próprio Rafa Bocaina, como com o chef Filipe Ramalho, do Páteo Real, em Alter do Chão, ou João José, do Porco Saloio. Há também planeado um workshop de desmancha, um de chouriço português e farinheira, e outro focado nas três raças autóctones portuguesas. Nas visitas, o grupo vai passar pela Herdade Porcus Natura e a salsicharia Canense e nem o restaurante Mugasa, em Anadia, famoso pelo leitão, fica de fora da tour.
Correndo bem, para o ano o evento regressa a Portugal, quem sabe com alguma programação aberta ao público, como era para ter acontecido agora. "Esta é só uma primeira fase, no fundo. É preciso ter um certo conservadorismo no primeiro passo."
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