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Diogo Infante encenou pela primeira vez Tennessee Williams em 1998, Jardim Zoológico de Cristal. Também a protagonizou, dividindo o palco com Carmen Dolores. Agora, 25 anos mais tarde, volta a dirigir uma peça do dramaturgo norte-americano e fá-lo num espaço entretanto baptizado com o nome da actriz, a sala principal do Teatro da Trindade. Trata-se de A Peça Para Dois Actores, que há muito queria levar à cena. “Muitas das vezes pensei eu próprio fazer o papel, com várias actrizes de quem sou amigo e admirador. Mas a verdade é que nunca se concretizou”, conta. A oportunidade surgiu há uns “três ou quatro anos”. “O Miguel [Guilherme] procurou-me e disse que gostava muito de trabalhar comigo, se podíamos encontrar um texto para os dois. E eu lembrei-me deste.” Não para ambos o interpretarem, como era o propósito de Miguel Guilherme, mas este gostou do desafio. Nunca tinha feito Tennessee Williams. “Depois falámos na Luísa [Cruz].”
O encenador nunca havia trabalhado nem com um nem com outra. “Quando o Miguel pôs a Luísa como possibilidade, eu disse: isso seria ouro sobre azul! E a verdade é que, quando a abordei, ela mostrou logo disponibilidade.” São só eles em palco, durante quase hora e meia, numa sucessão de momentos de tensão, medo e desespero; de um amor entre irmãos tingido por um ódio quase cego, encurralado física e psicologicamente num cenário e numa circunstância precárias, decadentes. “A peça é muito exigente. Eles têm que sustentar toda esta conflituosidade e esta complexidade de emoções, e a verdade é que se entregaram nas minhas mãos e por isso estou muito grato”, diz Diogo Infante à Time Out, após um ensaio a menos de duas semanas da estreia – a 27 de Abril. “Tem sido incrível.”
A Peça Para Dois Actores demorou uma década a ser escrita, e foi várias vezes revista pelo dramaturgo. Esta é a última versão, que Tennessee Williams fixou depois de ter estado internado num hospício. Não é um pormenor, visto estarmos perante um texto com traços autobiográficos em que a doença mental, as fobias e o confinamento são o fio condutor desde o início e constrangem tudo o que acontece na peça. Nela, Felice e Clare, irmão e irmã, são actores de uma companhia que os largou à sua sorte no meio de nenhures, no meio de uma digressão demasiado longa e financeiramente catastrófica. Mas eles insistem no espectáculo que têm para apresentar, sobre dois irmãos recentemente órfãos que não conseguem sair de casa, nem para ir à mercearia negociar o crédito para a comida que deixou de lhes ser entregue à porta, e que se acusam impaciente e violentamente deste mundo e do outro. Felice e Clare são também os nomes das personagens que as personagens interpretam, e a ficção vai confundindo-se com a realidade, chamemos-lhe assim. “É um jogo de caixinha dentro da caixinha dentro da caixinha”, observa Infante.
O encenador recorda que Tennessee Williams correu alguns “riscos” com a peça. “Tentou afastar-se da sua escrita, de um realismo psicológico que lhe era mais reconhecido, e tentou ir para uma zona um bocadinho mais... quase a roçar o absurdo, às vezes. Mas estava à procura. Estava a pôr-se em causa e nesse sentido tinha necessidade de evoluir. E eu encontro neste texto uma beleza muito grande, que me toca. Daí a vontade de o partilhar.” A primeira vez que o leu estava no Conservatório. “Fiquei absolutamente encantado. E a verdade é que, passados 30 e tal anos, aqui estou eu.” A leitura que dele fazia então é “muito parecida" com a que faz hoje, embora reconheça uma espécie de tragicidade e de fatalismo que “de alguma forma ganha uma dimensão ainda mais poética e bonita e trágica depois de tudo aquilo que temos vivido”. Ou seja, depois da pandemia.
Diogo Infante foi introduzido à obra de Tennessee Williams, como quase toda a gente, através do cinema. Mas só quando encenou Jardim Zoológico de Cristal é que mergulhou verdadeiramente na obra. E depois novamente para Um Eléctrico Chamado Desejo, em 2010, com Alexandra Lencastre (ambas para o D. Maria II). “Há temas do Tennessee Williams que são recorrentes, que são a sua própria vida e a relação com os pais e com a irmã, e a sua luta contra uma sociedade preconceituosa, sobretudo no Sul dos EUA. Há ali uma humanidade que salta por detrás das pedras, de forma gritante. Ele tinha tantos medos e paranóias e de alguma forma usou a sua escrita como terapia, como salvação. E escreveu algumas peças das mais bonitas da dramaturgia do século XX”, continua.
Esta avaliação faz com que o encenador (e director artístico do Trindade) queira “honrar o espírito do texto e o espírito do autor”, sem lhe introduzir um cunho demasiado pessoal. “Nunca tenho a pretensão ou a ambição de reinventar o texto, ou de criar uma situação que possa ser uma interpretação. Quero mergulhar na cabeça do autor e ouvi-lo bem. Ouvir as palavras que diz e aquilo que sugere, as didascálias e a música, para entendê-lo melhor.” Por exemplo: as Bachianas brasileiras que vão pontuando o enredo, do compositor Heitor Villa-Lobos, são uma indicação de Tennessee Williams.
A Peça Para Dois Actores vai estar em cena durante dois meses, até 25 de Junho. Uma oportunidade, como diz Diogo Infante, sobretudo para quem nunca a viu em palco: “Este é um texto que tem sido revisitado pontualmente, mas há sempre gerações que não o viram, ou que não tiveram possibilidade de se confrontar com ele, e portanto acho que há sempre um público que pode beneficiar deste projecto.” A 14 de Maio, haverá uma conversa com o público após o espectáculo.
Teatro da Trindade. 27 Abr a 25 Jun. Qua-Sáb 21.00 e Dom 16.30. 10-20€
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