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Tudo começou há nove anos, na Biblioteca da Penha de França, com a ideia de um projecto comunitário em que se recolhessem os testemunhos genuínos do bairro, indo de moradores a comerciantes e aproveitando a riqueza da história oral. Em “Vidas e Memórias de Bairro: oficinas comunitárias da memória”, os protagonistas foram cidadãos maiores de 65 anos dispostos a recordar como era a Lisboa dos mercados e da lavoura, quando as casas de banho eram “lá fora” ou se respirava chiqueza na Rua Morais Soares. Em 2017, o projecto avançou para Marvila e depois para outras bibliotecas da rede municipal, alargando-se ao programa Memórias de Lisboa, que hoje pode ser feito tanto por trabalhadores ligados ao município como por cidadãos autónomos, interessados em resgatar uma Lisboa do passado ou em extinção.
A par do contar há as fotografias, os registos áudio, a documentação variada e os vídeos que ajudam a refazer a história da cidade, como os que surgiram no ecrã da Biblioteca de Marvila a 23 de Maio, durante 1.º Encontro Memórias de Lisboa. Nas imagens amadoras captadas por um homem que ganhou uma Super 8 nos anos 70, porque o patrão não teve outra forma de lhe pagar, há Salgueiro Maia em frente ao Quartel do Carmo, marcas de balas, gentes subindo a Rua Garrett ou no Terreiro do Paço. “O 25 de Abril foi o dia em que as Super 8 saíram à rua. Agora estas imagens fazem parte da memória colectiva da cidade e do país”, congratula-se Fátima Tomé, do Traça, um projecto de recolha, estudo e exibição de filmes de família promovido pela Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa. Na altura, revelar uma bobine custava 1500 escudos e o ordenado médio rondava os 2000. Mas, sem esta ousadia quase hipotecária, contaríamos hoje o dia 25 com a mesma diversidade?
No tempo em que as crianças trabalhavam
Ao lado de Fátima Tomé, Fernando Carrilho, também da Videoteca, refere as centenas de documentários feitos sobre o “património cultural da cidade, as comunidades e as profissões” durante os últimos anos, a maior parte acerca de dias não-excepcionais. A vida num bairro popular, banal, com crianças a jogar à bola, mães cozendo pão e homens apanhando o eléctrico para o trabalho era mesmo isso: banal. E essa normalidade dos acontecimentos fez com que muitas vezes não se encontrasse interesse em registá-los. Mas é o comum que compõe a massa de todos os dias e que permite compreender uma época.
Foi das rotinas e repetições que saiu, por exemplo, “Trabalho de Menino”, um espectáculo de dança em que os movimentos coordenados ou o caso de uma explosão na fábrica de armamento do Braço de Prata, na antiga Marvila operária, se tornaram a base da coreografia. Com alunos da Escola Luís António Verney, de ensino artístico, e a partir de entrevistas a lisboetas que trabalharam ainda em crianças na zona oriental da cidade, reconstituiu-se o que ali se viveu, passando pela produção em série e pelas bancadas em linha. A peça, tal como acontece com os filmes ou as exposições, foi, no fundo, a forma encontrada para devolver a memória à cidade. “Contaram-nos sobre o toque da sirene, sobre a rotina de ir buscar o pão ou de apanhar o eléctrico operário para ir para Marvila. Também ouvimos o senhor José Fonseca, que aos dez anos já trabalhava e nunca recebeu o ordenado. Nós quisemos representar tudo isso”, conta Ana Margarida Delgado, que criou a peça com Sara Schürmann para a apresentarem na Biblioteca de Marvila.
Mais distante da palavra e próximo da imagem, o Movimento de Expressão Fotográfica (MEF) também tem colocado alunos a registar as memórias da cidade. “É um documento de uma comunidade em transformação, a preservação da história e da memória num sentido micro”, descreve Luís Rocha, do MEF, enquanto mostra trabalhos sobre as vias que levam às antigas portas da cidade (como as de Benfica ou as de Santo Antão), sobre a vida familiar em diferentes bairros de Lisboa, as hortas urbanas de Chelas ou as padarias de Carnide. “Em cada projecto A Memória do Agora, a ideia é editar um livro e fazer uma exposição. As Antigas Estradas de Lisboa, por exemplo, está quase a ser editado.”
O mesmo recurso, a fotografia, levou Camilla Watson a retratar, durante anos, os moradores de bairros como a Mouraria ou o Castelo, numa acção comunitária e social que faz com que as pessoas "sintam orgulho do lugar onde vivem", nas palavras da fotógrafa britânica emigrada em Portugal.
Outro caso chamado à conversa foi o Museu do Aljube, “o primeiro espaço de memória em Portugal”, como diz Francisco Ruivo, da equipa do museu, que desde 2015 entrevistou 195 resistentes à ditadura, a maioria nascida na década de 40, para não deixar esquecer-se um país que não queria guardar grande parte da sua história real. Sendo um “projecto sem financiamento próprio”, como lembra o responsável, vai-se desenvolvendo em janelas de oportunidade. “Só não fazemos mais porque não temos condições”, nota Francisco Ruivo, não diminuindo a importância do processo. “O Estado Novo procurou ‘domesticar’ e ‘higienizar’ esta Lisboa mais popular e pobre através de um ‘urbanismo civilizador’, tal como o fez com algumas actividades dos tempos livres e tradições”, do fado aos santos populares. Esta é uma forma de recuperar uma parte desse apagamento, mesmo que a memória de hoje traga deturpações que se impregnaram com o tempo.
Os punks e as carrinhas de mudanças
Um dos trabalhos mais recentes enquadrados neste programa está a ser conduzido pela Pró Punk, uma associação com menos de um ano que quer contar (e reavivar) a história do movimento punk em Portugal, começando por Alvalade. "Há muitos miúdos que nem fazem ideia, hoje, de que temos um grande património punk. E é preciso dar a conhecer essa história", defende Cristina Carrilho, uma das fundadoras da associação, que deixa antever o projecto em curso: "Vamos ouvir as histórias dos primeiros punks, que ainda estão vivos, dos Coruchéus até às ilhas, porque cada um viu e viveu o punk de uma forma diferente. Temos tido imensa procura de material punk, para investigações académicas, por exemplo, e a verdade é que há muito pouca coisa. Nós queremos criar isso", diz.
Para Fernanda Rollo, historiadora e professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, não é só o passado que merece esse resgate, mas também o que está em transformação. O clique deu-se quando viu, não pela primeira vez, caixas e móveis saírem em catadupa de um prédio da Avenida de Berna. “Pensei: chega!” Começou, então, a recolher e a fomentar o registo de todo o tipo de memórias relacionadas com a vida nas Avenidas Novas, o que envolveu entrevistas a moradores de apartamentos, mas também visitas a estabelecimentos históricos, como a Pastelaria Versailles. Agora, em www.memoriaparatodos.pt aloja-se o resultado de um programa de investigação focado “no testemunho oral, recorrendo à ciência aberta”, ou seja, feita pelos cidadãos. “Agora, recolher memórias é a parte fácil. O difícil é a edição, a classificação e a indexação de todo o material”, esclarece.
150 entrevistados, mas falta um lugar para os mostrar
É também essa a dificuldade com que se bate a Direcção Municipal de Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, que coordena o programa. Da recolha que começou a ser feita em 2015 contam-se hoje 150 entrevistados. Daqui, saíram mais de 300 pequenos vídeos, e mais ficou arquivado. E se no início a recolha de memórias era sempre acompanhada por técnicos da autarquia e dos seus diferentes braços (como bibliotecas ou arquivos), agora, qualquer cidadão pode avançar com um projecto autónomo, com ou sem apoio da Direcção Municipal de Cultura, para que a recolha possa seguir a uma maior velocidade, sem perder tempo. Existe, inclusive, um manual que indica os passos a dar para a recolha sistematizada de testemunhos, que começa sempre por uma oficina comunitária com os entrevistados. A ideia é trabalhar a base para que se chegue a um guião final para cada entrevista, nos casos de recolha de testemunhos orais.
“A nossa vontade é que todas estas memórias possam ser colocadas numa mesma plataforma, georreferenciada, que permita a pesquisa simples dos conteúdos”, explica à Time Out Alexandra Aníbal, que coordena o programa municipal. No fundo, um e-museu das memórias de Lisboa, a partir do qual se possa compreender a cidade desde as varinas da Madragoa até aos migrantes de Arroios. Para já, a equipa está a trabalhar na classificação e indexação dos vídeos, “um trabalho preparatório” que vai levar tempo. Para o museu estar “no ar”, ainda não há horizonte, e é por aqui que segue o apelo da coordenadora do programa a Carlos Moedas, agora que o presidente da Câmara acumula a pasta da Cultura: “Que dê atenção ao nosso caso e permita tornar isto possível. As memórias unem as pessoas, as comunidades, e fazem com que sintam orgulho da sua história e de onde vivem.”