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Já lá vão uns anos desde que a associação Rés do Chão, o grupo comunitário 4 Crescente ou o Grupo Recreativo Janz e Associados, bem como investigadores da academia, se encontram para discutir o que fazer para melhorar Marvila. E fazem. Naquela que é a quarta maior freguesia de Lisboa, montaram-se projectos como a Cicloficina Crescente de Marvila, Ciclopes, Roda Viva, Bicicleta com Asas ou a rede Gingada (o termo “ginga” é usado para designar a bicicleta, em diferentes zonas, e inspirou o projecto criado em 2020), tudo à volta da promoção do uso da bicicleta por crianças e jovens. E tudo porque o acesso e o transporte são também luta e arma política.
É muito isso, numa análise sobre a freguesia nos últimos anos – gentrificação de um lado, esquecimento do outro – que expõe o livro Gingar na cidade. Bicicleta, participação e transformação do território (da editora Tigre de Papel), de vários autores, apresentado a 20 de Fevereiro na Biblioteca Municipal de Marvila. Como afirma Bárbara Ferreira, uma das autoras, “Marvila foi a freguesia cujos preços [do imobiliário] mais aumentaram, mas continua a ser periférica". Para percebê-lo, "basta perguntar a qualquer pessoa como faz para chegar ao centro da cidade em horário pós-laboral. Parece que estas pessoas só têm validade como cidadãos durante o período em que trabalham”, insiste a investigadora.
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Se a zona ribeirinha da freguesia saiu do escuro, com a recuperação de armazéns, a ajuda da noite, de novos restaurantes, lojas de design, galerias, rede ciclável e estações de bicicletas partilhadas, a Norte da linha férrea – onde, já agora, os comboios não param durante o fim-de-semana (no apeadeiro de Marvila, porque o de Chelas deixou de funcionar há dez anos) – o cenário é outro. Além do deserto ferroviário, o metro não está à vista e a mobilidade suave não existe nesta parte da freguesia – alguém viu uma estação Gira no bairro das Salgadas ou dos Alfinetes? (Em Marvila, as Gira estão apenas na Praça David Leandro da Silva, em frente ao 8 Marvila, e no Parque Ribeirinho do Oriente.)
Restam os autocarros, que, ainda assim, não respondem a todas as necessidades. Os entraves à mobilidade têm sido alvo de queixas por parte de colectivos de Marvila, mas também dos vizinhos do Beato. De ambos os lados, são frequentes os pedidos à autarquia para que tudo mude, mas, grosso modo, tudo fica na mesma. Não ajudam a fragmentação geográfica criada pela ferrovia e rodovia, e as décadas de uma política centrada no automóvel, como acusam vários especialistas. Décadas passadas, em 2025 é como afirma a professora Rita d’Ávila Cachado, que teve a seu cargo a apresentação do livro: “Não sei como se pode olhar para uma cidade ou para um território específico, como uma freguesia, sem olhar para a área da mobilidade.”
"A bicicleta ganha visibilidade no bairro"
Nada a fazer? Antes pelo contrário. “Os grupos comunitários têm muito esta luta de não serem só cidadãos de segunda a sexta” e alimentam “o sonho de mudar o seu bairro”, continua Bárbara Ferreira. A questão é se, exercendo pressão sobre o poder público, estarão mais perto de concretizá-lo. Talvez não. “Nota-se uma grande diferença para o executivo actual. A forma como encaram as reivindicações dos cidadãos é apenas no sentido de legitimar decisões que já haviam sido tomadas antes, em gabinete. E isso é muito perigoso”, critica a mesma investigadora, referindo-se aos chamados processos de participação pública lançados pela Câmara de Lisboa.
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Coube aos autores Henrique Chaves e Inês Vieira traçar um dos capítulos do livro que coloca a bicicleta no cerne da transformação social e urbana de Marvila (em 2022, Henrique apresentou o Estudo Participativo sobre Mobilidade em Marvila, um diagnóstico das carências da freguesia no plano dos transportes, e continua a investigar o tema). Sempre a partir da comunidade, com o impulso de colectivos locais, a Gingada e a Roda Viva mudaram as noções de distância para muitos moradores. Com elas, criaram-se uma rede de partilha gratuita e de aluguer de bicicletas, serviços de manutenção e reparação, e estudaram-se as dinâmicas da freguesia.
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“Uma das aspirações de todo o consórcio do projecto Gingada é que exista em Marvila, com funcionamento regular, um espaço para as pessoas aprenderem a andar de bicicleta”, escrevem os investigadores. Por outro lado, um dos pensamentos foi: já que não há um sistema de mobilidade suave na parte interior de Marvila, criamos nós uma rede. Para pessoas em situações sócio-económicas frágeis (mais de 50% da população da freguesia vive em habitação social), ter acesso a uma bicicleta é também resolver um problema.
Financiada pelo programa BIP/ZIP, a rede Gingada pôs várias organizações locais e académicos a mexer no terreno. Uma das iniciativas aconteceu no Bairro dos Alfinetes, onde da loja ConVida (dinamizada pela associação Rés do Chão) saíram dezenas de crianças de bicicletas na mão, emprestadas gratuitamente. “De forma lúdica, a bicicleta ganha visibilidade dentro do bairro, as crianças brincam e desafiam-se através da bicicleta”, apontava em 2021 Henrique Chaves no seu, chamemos-lhe, “diário de bicicleta”. Eram bicicletas oferecidas por moradores, compradas ou angariadas de outras formas. Mais tarde, o projecto alargou-se ao Bairro do Armador.
O cool e o caro
O esquecimento de Marvila Norte, com o peso da "grave crise" na mobilidade que atravessa, torna-se ainda mais visível pelo contraste com tudo o que se passa imediatamente ao lado, junto ao rio. Da construção de prédios destinados ao luxo à de um novo status quo, “cada vez mais, as cidades ocidentais têm vindo a ser palco de numerosos processos de recuperação do edificado em áreas pós-industriais, estimulando vagas de investimento maciço no sector imobiliário”, pode ler-se no livro Gingar na Cidade. Com Marvila não é diferente, gerando um “futuro muito duvidoso” quanto à melhoria da qualidade de vida dos cidadãos e ao direito à cidade, na visão de Laura Pomesano, outra das autoras, presente na apresentação do livro.
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Com vários projectos de habitação de luxo ou pelo menos voltados para as classes altas, quando mais de 50% da freguesia é feita de habitação social, como será Marvila daqui a uns anos, pergunta-se a investigadora. Haverá lugar para os locais? A comunidade criativa aguentará a pressão? “Este lugar tornou-se atractivo por causa dela, mas agora está a tornar-se outra coisa completamente diferente”, aponta, em referência a uma espécie de artwashing que acelera o processo de gentrificação. “Os próximos anos talvez não sejam fáceis, por isso é preciso perceber o que podemos fazer para fortalecer comunidades e as actividades culturais”, acredita. Para que não sejam empurrados para a periferia da periferia.
“Os moradores de baixos rendimentos têm visto ameaçada a possibilidade de continuarem a viver neste território que sofre intensos fenómenos de gentrificação” e mesmo “os pioneer gentrifiers têm sido afastados cada vez mais por não conseguirem aguentar o aumento dos preços trazidos por investidores de última geração”, concluem os investigadores.
Nos últimos anos, passou a “gingar-se” mais em Marvila, sim. Mas “os desafios de desigualdade sócio-urbanística desta freguesia ainda são bastante presentes e têm muita influência sobre a mobilidade urbana”, concluem os investigadores, deixando assente o seguinte: o Gingada “não foi o início nem o fim da mobilização para transformar o território marvilense”. Palavra escrita.
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