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É a falar que a gente se entende: “o desfecho vai ser sempre o mais terrível”

A nova criação do Teatro Griot conta com encenação de Zia Soares, a partir do texto de Bernard-Marie Koltès. Estreia esta quarta-feira no Teatro Ibérico.

Beatriz Magalhães
Escrito por
Beatriz Magalhães
Jornalista
Na Solidão dos Campos de Algodão
© Marlene Nobre Na Solidão dos Campos de Algodão
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São três, vestidos de preto. Andam de um lado para o outro, seguem-se uns aos outros ao mesmo tempo que fogem uns dos outros. Ocupam o palco como se fosse deles. Mas depois olhamos mais atentamente e percebemos que, na verdade, são quatro. O último, mais grisalho, está lá ao fundo, meio escondido, quer pelas roupas que veste, quer pelo facto de se encontrar longe de onde a luz incide. É quando um deles toma a palavra que tudo começa. No cerne da acção, está uma vontade de transacção, de vender algo ao outro homem que se põe agora à sua frente. Vender o quê? Nunca chegamos a saber. 

O texto é de Bernard-Marie Koltès e foi publicado nos anos 1980. Certa de que já terá sido adaptado centenas de vezes em vários lugares, Zia Soares confessa que a vontade de pôr em cena Na Solidão dos Campos de Algodão já vinha de trás. Agora pareceu-lhe ser o momento certo para o fazer. “Este texto traz-nos muitas reflexões sobre o momento presente que estamos a viver em várias partes do nosso globo. E o facto de voltarmos a um texto escrito para teatro pareceu-nos interessante nesta altura, depois de termos abordado novas dramaturgias”, diz-nos a encenadora, após um ensaio no Teatro Ibérico. 

Na Solidão dos Campos de Algodão
© Marlene NobreNa Solidão dos Campos de Algodão

Tendo em conta que foi escrito originalmente em francês, o processo de traduzir o texto não foi propriamente fácil, já que a palavra impõe-se como um elemento importante da peça. Condutora da acção, a palavra torna-se uma das protagonistas, a par com os quatro actores em cima do palco. Assim, em cima da mesa, também esteve a preocupação de encontrar as palavras certas na língua portuguesa, o que, realça Zia Soares, foi um “processo realmente muito cuidadoso, demorado, que foi preciso ir afinando”. À medida que cada actor vai tomando parte do diálogo, as suas intenções tornam-se mais claras e vai surgindo a necessidade por um espaço de fala. “É um combate de palavras e é um combate até do actor com as próprias palavras, com as palavras que ele tem de dizer e com a hemorragia dessas palavras. Como é que o actor pode depois conter a hemorragia, estancar a hemorragia, ou, por outro lado, encarnar a palavra e ser ele próprio essa hemorragia”, explica.

Os quatro actores em cena vão então tomando o lugar uns dos outros. De forma a conseguirem obtê-lo, eles vão transformando-se e, em simultâneo, desvinculando-se uns dos outros e criando novos “eus” para assim roubarem a palavra. Em palco, Daniel Martinho e Gio Lourenço, que fazem parte do Teatro Griot, juntam-se a Pedro Hossi e Hugo Narciso. “Eles são todos muito diferentes entre eles, mas ao mesmo tempo conseguimos encontrar aqui uma uniformização, como se eles fossem também uma voz unívoca, em uníssono, mas também vozes por vezes muito divergentes e muito díspares”, realça Soares, também directora artística do Teatro Griot.

Na Solidão dos Campos de Algodão
© Marlene NobreNa Solidão dos Campos de Algodão

À falta de grandes elementos cénicos, a não ser uma ou duas cadeiras, a força do espectáculo está naquilo que é dito e, em simultâneo, no que não é dito. Porque, apesar de a peça viver principalmente do texto, nunca é explícito aquilo que está a ser discutido. Sabemos que há quem esteja a vender e quem esteja a comprar e também que há quem deseje vender e quem não deseje comprar. Se são drogas ou sexo na parte má da cidade, ou se é comida e água no meio de uma guerra, não temos a certeza. Por outro lado, não deixa de estar presente uma dicotomia que realça a existência de um universo que se faz verticalmente. Enquanto que lá em cima, há luz e um ambiente um tanto asséptico, cá em baixo há escuridão e lixo. Contudo, há momentos em que esta dicotomia se desvanece. “Eles encontram-se num espaço de intersecção, este espaço de transacção ilegal, da conversação. Por vezes, também parece uma mesa de conversações que antecede uma guerra e que nós tantas vezes já assistimos na televisão sentados no conforto dos nossos sofás. E no fundo todos sabemos que o desfecho vai ser sempre o mais terrível, que é a guerra que vem a seguir."

Na Solidão dos Campos de Algodão
© Marlene NobreNa Solidão dos Campos de Algodão

Muito se pode retirar do que não é nomeado e é aí que também reside a complexidade do texto. Por muito que se ouçam todas as palavras que são proferidas, é quando estas faltam que a nossa atenção é especialmente captada. Uma das cenas que o melhor representa é uma sequência de luta em que nenhum dos actores se toca fisicamente. À medida que sofrem novos golpes e que se vão contorcendo com dores, caem ao chão, exaustos. De seguida, um deles começa a falar novamente, enquanto rebola no meio de peças de roupa caídas. E, de novo, a palavra é retomada. 

Teatro Ibérico. 18-29 Set. Seg-Sáb 21.00, Dom 17.00. 10€

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