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“É mesmo preciso construir”? Munícipes estão preocupados com o futuro Vale de Santo António

Receio de que não se garantam rendas acessíveis e falta de consulta a população e actores locais dominaram última sessão pública sobre plano de urbanização. Até 30 de Julho, autarquia recebe contributos dos cidadãos.

Rute Barbedo
Escrito por
Rute Barbedo
Jornalista
Sessão pública de 4 de Julho, no Vale de Santo António
Carlos Morais da Silva/CMLSessão pública de 4 de Julho, no Vale de Santo António
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Com três sessões presenciais e abertas à população, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) sinalizou o arranque da discussão pública de um dos mais importantes projectos para a cidade, a alteração do Plano de Urbanização do Vale de Santo António (PUVSA). Até 30 de Julho, a participação continua, mas por escrito, com os interessados a terem a opção de enviar críticas e sugestões por e-mail (dmu.dpu.dpt@cm-lisboa.pt), sob a garantia, dada pela vereadora do Urbanismo, Joana Almeida, na última sessão pública, a 5 de Julho, de que "todas as pessoas terão resposta". 

Entre as novas imagens, um vídeo e a documentação disponibilizada pela Câmara Municipal de Lisboa (está tudo aqui), percebem-se como se planeia distribuir os 2400 fogos de arrendamento acessível, as áreas verdes (da qual fazem parte um parque urbano de oito hectares, hortas e um lago com um sistema de reaproveitamento hídrico) e os 15 equipamentos públicos, da escola básica a duas creches, passando pela piscina, complexo desportivo, residência para estudantes ou o centro de dia. O que não está online são os detalhes, as dúvidas e as preocupações dos munícipes acerca deste megaprojecto desenhado para 48 hectares de terrenos 95% públicos entre São Vicente e a Penha de França.

Projecto para o Vale de Santo António
DR/CMLProjecto para o Vale de Santo António

“Sou contra mais betão armado. Há perto de 1900 casas vagas na Penha de França e 438 em São Vicente, o que dá praticamente o número das que vão construir aqui. Temos quartéis fechados… Por que é que não se envereda por aí?”, questionou um munícipe, na sessão de apresentação de sexta-feira, 5 de Julho, no Centro Paroquial da Igreja de São Francisco de Assis, na Penha de França. “Estamos a precisar de um teatro na freguesia. Não temos. E isso não está contemplado”, comentou um morador da Penha de França. Outra participante aproveitou a oportunidade para pedir esclarecimentos sobre o financiamento do projecto (uma das grandes preocupações quanto ao plano) se será público, privado ou misto –, que a autarquia quer ver começar a erguer-se o mais brevemente possível, conforme avançou Joana Almeida na reunião. 

Projecto comunitário em risco de desaparecer

Há também preocupações de ordem visual, como "a altura daquelas torres [de habitação]", que a vereadora explicou que "não vão ficar assim tão altas, porque vai haver uma modelação do terreno”, ou quanto a questões de mobilidade. Havendo um aumento estimado de 6000 habitantes na zona, “não se deveria equacionar uma estação de metro?”, questionou um munícipe. E outro pediu, ainda, que se pensasse em devolver aos habitantes da Parada do Alto de São João, Bairro Lopes e Vale Escuro, a ligação pedonal de outros tempos entre a colina e o vale, tornando mais simples o acesso da população “desde lá de baixo até ao cemitério”. 

Projecto para o Vale de Santo António
DR/CMLProjecto para o Vale de Santo António

Mas a intervenção que mais tensão terá provocado na sessão de sexta-feira foi a de Paulo Torres, fundador da Associação Regador, e que abriu portas a outro tema: a falta de participação dos actores locais na proposta para o vale. Não sendo completamente claro nas imagens partilhadas pela autarquia, a associação teme que no lugar do projecto comunitário, pedagógico, ambiental e cultural do Alto da Eira, que tem numa horta o seu eixo motor, venha a surgir um edifício. “Vão destruir um local que já juntou 500 crianças, e foi recentemente apresentado num congresso internacional como um bom exemplo da cidade?”, questionou o dirigente (sem receber resposta da autarquia), depois de também ter demonstrado dúvidas quanto à capacidade de a CML concretizar o projecto urbanístico sem recurso a financiamento privado, o que poderia conduzir à queda de uma das suas principais bandeiras e mais-valias, a da habitação acessível.

Silêncio, dúvidas e respostas evasivas

A proposta de alteração ao PUVSA, aprovada em Maio pela Câmara de Lisboa, é um dos grandes projectos de urbanismo integrados nos programas Melhor Cidade e 5 Vales (o último visa mexer nos vales da Almirante Reis, de Alcântara, Ajuda e Chelas, para além do de Santo António). “O interesse e a prioridade quanto a este plano é unânime”, afirmou Joana Almeida, avançando com a urgência e a agenda prevista pela CML: os contributos recolhidos no período de discussão pública serão integrados ou rejeitados (consoante a análise dos técnicos da Câmara) na proposta até Setembro e, no final do ano, a autarquia quer ter o plano aprovado pela Assembleia Municipal de Lisboa, para que se avance o mais rapidamente possível com a obra, que se desenrolará por fases, estando a sua conclusão prevista para 2036.

Vale de Santo António
Carlos Morais da Silva/CMLVale de Santo António

Também quanto ao financiamento do projecto, orçado em 750 milhões de euros (o orçamento de 2024 da CML é de 1,3 mil milhões de euros), sobraram dúvidas. Enquanto a vereadora do Urbanismo referiu a necessidade de “encontrar diferentes fontes de financiamento”, a vereadora do PCP, Ana Jara, que participou na sessão do lado da audiência, garantiu que o projecto é um “investimento municipal”. “A Câmara Municipal de Lisboa tem de construir com esta verba, a verba disponível, todos os anos, até ao fim. A questão financeira sempre preocupou o PCP, porque queríamos muito que esta habitação fosse de renda acessível. O que está votado é isso”, afirmou.

Na mobilidade, confirmou-se a implementação de três quilómetros de ciclovia, com as respectivas estações e bicicletas, mas o metropolitano não é assunto para agora. “Concordo que um dia será necessário uma estação de metro, mas ela não está programada”, declarou Joana Almeida. E relativamente à inclusão de um equipamento cultural no território, a resposta ficou para o arquitecto João Veríssimo, do Departamento de Urbanismo da CML: “Há espaço para isso. Temos mais de 40 mil metros quadrados de superfície, disseminados pela área toda, dedicados a equipamentos”.

“Não fomos convidados a participar”

A par dos pontos específicos elencados na sessão pública, há um aspecto geral, de ordem metodológica, ao qual diferentes agentes locais apontam críticas na actuação da CML: o facto de não terem sido integrados no planeamento do futuro da cidade, sobretudo sendo estes 48 hectares quase exclusivamente públicos e existindo a intenção de financiar o projecto com recurso a fundos 100% públicos. A Associação Regador, por exemplo, que chegou a participar numa conferência sobre o Vale de Santo António há um ano (moderada pelo arquitecto Paulo Pardelha, que lidera o plano de urbanização em discussão) “nem sequer foi convidada a participar no projecto”, lamentou um dos seus fundadores, Paulo Torres.

Também fonte do Operário Futebol Clube de Lisboa, que está no centro de todo o plano, ao ocupar (por um direito de superfície em usufruto nos próximos 18 anos) um terreno camarário junto à Avenida Mouzinho Albuquerque, afirma à Time Out que o clube nunca foi consultado no âmbito da operação urbanística, pelo menos desde que a actual direcção tomou posse, em 2021. Na documentação disponível, consta, no entanto, que em 2018 (durante o mandato de Fernando Medina), na sequência de uma visita de responsáveis da CML às instalações do clube, ficou decidido na Assembleia Municipal de Lisboa dar “guarida à intenção do Operário Futebol Clube de participar activa e construtivamente nas discussões sobre o planeamento da requalificação do Vale de Santo António”.

Ainda sobre a questão da participação pública, a Time Out colocou duas questões à vereadora Joana Almeida, na sessão de 5 de Julho: a primeira, sobre quão flexível é a proposta que está em discussão e de que forma os contributos dos cidadãos, das associações e de outros colectivos serão integrados no projecto; a segunda, sobre se e como pretende a Câmara integrar os resultados do inquérito alternativo que um movimento de cidadãos realizou proactivamente sobre o futuro do vale, em que mais de metade dos 598 respondentes mostraram desacordo em relação ao projecto.

“Quando o inquérito foi feito, eles ainda não conheciam este projecto, que foi apresentado agora, e diria que, de alguma forma, eles se reviram nesta nova proposta. Mas vamos considerar os resultados do inquérito”, respondeu a vereadora. Contactado pela Time Out, Hugo Warner, um dos autores do referido inquérito, recusa, no entanto, esta ideia de sintonia com a CML. “Há duas coisas: a nossa opinião pessoal e os resultados do inquérito. Quanto à nossa posição, mantém-se exactamente a mesma. Não era preciso conhecer o projecto em detalhe. O que conhecemos desde o início era suficiente”, afirma, explicando que o grupo de cidadãos que se juntou para colocar o projecto em discussão não concorda com uma solução morosa e baseada na construção para tentar resolver “as diferentes crises que atravessamos”, da habitacional à climática. “A crise da habitação é um problema urgente, para resolver agora”, argumenta o especialista em economia circular, que defende que o vale poderia funcionar como um pulmão da cidade.

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