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É um filme ou uma série? É um fenómeno português

Nos últimos anos, temos assistido a filmes que se desdobram em séries e séries que se comprimem em filmes. Falámos com produtores e realizadores para perceber melhor o que está a acontecer no audiovisual português.

Renata Lima Lobo
Escrito por
Renata Lima Lobo
Jornalista
Ivo Ferreira
©Pedro Pina – RTPIvo Ferreira (à direita) durante a rodagem de 'Projecto Global'
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Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 669 — Primavera 2024.

Em Fevereiro, a Time Out Lisboa foi assistir à rodagem do filme Projecto Global. E da série com o mesmo nome. Um recente exemplo de produções que tanto querem conquistar o público nas salas de cinema, como quem assiste em casa, às fatias, versão episódica. Projecto Global, uma obra realizada por Ivo Ferreira, com produção de O Som e a Fúria, foi o ponto de partida para falarmos com outros agentes ligados à sétima arte que têm vindo a desenvolver projectos que dão para os dois lados.

Mas voltemos ao dia de rodagem no Cemitério dos Prazeres onde se preparavam as cenas para Projecto Global, uma ficção sobre os anos que se seguiram à revolução do 25 de Abril de 1974 (e sobre a qual pode ler mais em timeout.pt). Neste caso, o desdobramento do projecto em série, que deverá estrear mais para o final do ano na RTP1, foi uma opção criativa relacionada com a quantidade de informação histórica que foi sendo recolhida. Deitá-la fora estava fora de questão. “Quando se começou a juntar as peças, daria uma longuíssima longa-metragem, que seria incomportável em termos comerciais e não só”, começa por explicar o realizador. Era um “assunto demasiado rico”, cheio de histórias que corriam o risco de “ficar um bocado a cair entre os dedos”. “Considero uma espécie de um díptico, no sentido que há dois objectos que não são iguais. Ou seja, o filme terá um fôlego diferente da série, até ritmos e profundidade de personagens. Não é um filme partido às postas, não é uma série aldrabada. É um verdadeiro filme e é uma verdadeira série”, defende. Neste dia, revelou em jeito de exemplo, estavam a filmar uma “cena pequenina, construída para ser um plano de sequência para a versão filme, e isso pode ser também partido e mais decupado, digamos, para a versão televisão”, destacando que “podem realmente ser as mesmas cenas, mas com formas de trabalhar diferentes”. A futura emissão na RTP resulta de um investimento do serviço público de televisão nesta produção, que se soma ao apoio do ICA – Instituto do Cinema e Audiovisual para a longa-metragem, o que permitiu avançar com dois formatos. “Evidentemente que isto é uma forma também de fazer um filme com um fôlego financeiro, de tempo e de cuidado, que seria completamente impossível se não houvesse este complemento de financiamento”, conclui.

Luís Urbano, fundador da produtora O Som e a Fúria, descortina alguns processos técnicos que servem as duas produções. “Estamos a filmar num formato que nos permite depois ter um bom layout para o formato de televisão e um bom layout para o formato de cinema. Do ponto de vista visual, também vai haver diferença. Uma coisa é ver o filme na tela grande com um formato diferente daquilo que é ver num formato mais quadrado, mais full frame na televisão. Tivemos que puxar muito pela cabecinha para encontrar aqui uma boa compatibilidade”, confessa. E defende que não estamos perante um filme “partido às postas, para dar uma série de três, quatro episódios”. “Quisemos fazer crescer o projecto, sabendo que há coisas que não vamos utilizar no filme e só vão ser utilizadas na série.”

“Contagiam-se uns aos outros”

Um exemplo de um filme que foi, de facto, partido em quatro é A Herdade (2019). Realizado por Tiago Guedes (Glória), chegou à grelha da RTP1 em formato minissérie de quatro episódios, mas com um tempo de duração praticamente igual. Numa conversa por telefone, Tiago Guedes recorda o processo. “Quando filmámos sabíamos que havia coisas que iam ficar só na série, ou pelo menos tínhamos essa noção. No entanto, o filme depois cresceu, cresceu, e o Paulo [Branco, produtor] achou que deveríamos fazer sair o filme na dimensão que ele precisava. E a partir daí ficou mais difícil ter uma série maior do que o filme, ou com mais coisas [...]. Acaba por ser mesmo um filme dividido em episódios.”

Diálogos Depois do Fim
©DRJoana Ribeiro e Miguel Borges, em 'Diálogos Depois do Fim'

Em mãos tem, neste momento, uma produção que fez o caminho inverso: Diálogos Depois do Fim, criada a partir do livro Diálogos com Leucó (1947), do escritor italiano Cesare Pavese, composta por 19 episódios que adaptam capítulos onde figuras da mitologia grega dialogam sobre a sociedade contemporânea. No entanto, os episódios de Diálogos Depois do Fim, que será emitida na RTP2 ainda sem data confirmada, estrearam-se no cinema no âmbito do LEFFEST – Lisboa Film Festival 2023. “O filme é uma espécie de uma extração desse material, depois de filmado, em que eu decidi juntar seis contos que, de certa forma, se ligam.”, explica o realizador, para quem o filme “não é uma compressão” da série. “As imagens são usadas de forma muito diferente, o que te dá logo objectos muito diferentes.” E são as linguagens entre uma coisa e outra assim tão diferentes? Tiago Guedes analisa: “Eu por acaso vou-me dando às vezes esse pensamento, até porque isto está a evoluir com uma rapidez tal e numa complexidade de formatos e de produtos a surgir constantemente, que é óbvio que sim. As séries foram atrás do cinema primeiro, não é? De um certo tipo de cinema. E hoje em dia eu acho que se contagiam uns aos outros”, conclui, apesar de acreditar que depende do tipo de formatos que se está a desenvolver.

Há, ainda assim, alguns truques utilizados especificamente para o formato série, como o popular cliffhanger, que nos deixa ansiosos pelo próximo episódio – uma regra não aplicável aos filmes. Mas Tiago Guedes acredita que a fórmula está gasta. “Quando faço um Glória estou mesmo a tentar seguir essa base de guião, que é termos que agarrar as pessoas, que deixar o cliffhanger. Ao mesmo tempo, também me canso um bocadinho dessas regras. É interessante não nos prendermos a isso, é uma técnica que também está a ficar, a meu ver, muito gasta. Desde A Guerra dos Tronos que isto anda de cliffhanger em cliffhanger.”

“O filme acaba por ter cenas inéditas”

Em 2021, chegou às salas de cinema o filme Bem Bom, que nos contou a história da girl band portuguesa Doce. Mas, na verdade, primeiro nasceu Doce, a série, como nos conta a criadora e realizadora Patrícia Sequeira. “Inicialmente, a ideia era serem sete episódios de uma série. Não era totalmente descartada a hipótese de filme, mas teria que ver se faria sentido depois de terminada a escrita. Depois fiquei um bocadinho dependente: se tivesse o apoio do ICA na série, talvez descartasse essa hipótese. Se não tivesse apoio do ICA, teríamos mesmo que conseguir captar mais dinheiro para fazer o projecto. O que é facto é que nós não fomos apoiadas pelo ICA na série”, recorda. “Apoiadas”, porque esta é uma produção com uma forte participação de mulheres no seu desenvolvimento. O argumento desta produção Santa Rita Filmes é assinado não só por Patrícia Sequeira, como também por Cucha Carvalheiro e Filipa Martins.

Doce
©Santa Rita FilmesDoce

“No filme, não concorri de todo. Se não deram à série, que estava tão completa e era mais densa, achei que nem valia a pena ir com o filme”, lembra. Mas Sequeira avançou nas duas frentes (que ainda podem ser vistas na Prime Video): “Eu acabei por agarrar nos sete guiões e perceber que havia ligações que precisavam de ser feitas, cenas que precisavam de ser acrescentadas e, portanto, o filme acaba por até ter cenas inéditas.” Como uma em que as Doce ficam sem gasolina e têm de dormir junto à bomba, enquanto ela não abre (na altura não ficavam abertas 24 horas), numa produção “mais focada na banda” que permitiu “contar algumas histórias diferentes”. Uma cena que também foi essencial para a produção, com uma conhecida gasolineira a permitir “montagem financeira” para o filme. E não para a série (que conseguiu o apoio da Portugal Film Commission): “Numa série com a RTP eu não posso ter marcas”, explica a realizadora da produção que, durante a rodagem, foi preparando as duas versões.

“É difícil honrar uma figura histórica em 90 minutos”

A produtora Ukbar esteve nos bastidores do desenvolvimento de três biopics sobre figuras da história e cultura portuguesa. A primeira, e recuando bastante no tempo, foi Florbela (2012), filme realizado por Vicente Alves do Ó que mereceu uma adaptação a série, sob o título Perdidamente Florbela. Alves do Ó também realizou o filme Amadeo (2022) – que também há-de passar na RTP em versão série, ainda sem data marcada. Pelo meio, a Ukbar produziu a série Soldado Milhões, de Gonçalo Galvão Teles e Jorge Paixão da Costa, que resultou num filme com o mesmo nome. Pandora da Cunha Telles, co-fundadora da Ukbar, levanta um pouco da cortina dos bastidores, numa conversa por telefone. “A principal razão pela qual nós fazemos isto – de filme para série, de série para filme – são os biopics. Existe um interesse narrativo e criativo para além daquilo que foi previamente dimensionado”, explica a produtora, que diz ser “muito difícil honrar uma figura histórica em 90 minutos”. “Existem pequenos elementos que são muito curiosos e que enternecem produtores, realizadores e argumentistas. E ao nos enternecer, temos vontade de dar ao espectador esses momentos.”

Soldado Milhões
©UkbarSoldado Milhões

Tanto em Florbela como em Amadeo, “há material integralmente rodado só para a série”, com “personagens e pontos narrativos feitos de forma diferente”. Em oposição, da série Soldado Milhões nasceu uma longa-metragem. “Quando fizemos a série, tínhamos interesse por parte de um distribuidor de sala em ter o filme. E só quando existe um interesse do mercado é que partimos para esta aventura. Porque isto custa muito dinheiro”, explica, dando alguns exemplos mais técnicos. “Estes ajustes requerem um reequacionamento em termos de montagem de imagem, de som, de música, de correção de cor… Muitas vezes, uma série de televisão não tem misturas 5.1 [som], não precisa de DCP [Digital Cinema Package], que é o formato de estreia em sala.” Outra curiosidade é que quando se adapta um filme para televisão não há necessariamente mais cenas. Porque, ensina Pandora, o tempo do cinema é mais longo. “Muitas vezes, quando existe um corte para televisão de um filme, não há simplesmente mais cenas: a duração de cada cena é menor. Há cortes em televisão que parecem intermináveis, porque correspondem a um tempo cinematográfico.” Uma percepção que está relacionada com o “eye scanning do espectador”. “Num telemóvel e num televisor, não ocorre quase eye scanning, porque somos capazes de apreender toda a tela com o espectro de visão ocular do espectador. E quando estamos no cinema, isso não acontece.”

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