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Em ‘A Colónia’, Marco Martins conta a história das crianças do Estado Novo

A nova criação do realizador e encenador revisita as vivências das crianças que estiveram, no Verão de 1972, numa colónia de férias para filhos de presos políticos. Estreia na quinta-feira, na Culturgest.

Beatriz Magalhães
Escrito por
Beatriz Magalhães
Jornalista
A Colónia
DRA Colónia
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Manuela era pequena quando os pais foram presos. Viviam na clandestinidade, tal como muitas pessoas que, na altura, também lutavam pela liberdade. A apreensão aconteceu poucos anos antes da revolução e dela Manuela recorda, entre outras coisas, os primeiros dias que passou com a mãe e a irmã em Caxias. De como dormiam as três agarradas no chão debaixo de um beliche, de como a mãe gritava aos seguranças, ou de como ela pegava no miolo do pão e nas cascas de laranja para construir pequenas casas. E depois, mais tarde, de como foi estar sem os pais e de como foi passar um Verão numa colónia, onde conheceu mais crianças como ela. Daqueles tempos, ficaram-lhe as fotografias, as cartas, os desenhos, as memórias. A história confiou a Marco Martins para contar. 

O palco da Culturgest estará dividido em dois pisos. Mas em Marvila a configuração da sala de ensaios pede uma outra disposição. Os tracejados no chão, além de dividirem os pisos, dividem o elenco, os acontecimentos, as linhas temporais e as gerações que fazem parte de A Colónia. Encenada por Marco Martins, a peça parte de uma investigação da jornalista Joana Pereira Bastos sobre as crianças que, no Verão de 1972, frequentaram uma colónia de férias para filhos de presos políticos. “Há esta ideia de como as ideias transitam de geração em geração, de pessoa para pessoa. No fundo, de como é que se conta uma história. Quando encontrei o artigo no Expresso da Joana Pereira Bastos, pareceu-me que era uma história que estava por contar. Era a história dos filhos dessa geração que são, de alguma forma, vítimas, mas também heróis”, começa por contar Marco Martins, após um ensaio.

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Como se trata de uma obra documental, foi necessário fazer um trabalho de pesquisa, tanto na Torre do Tombo como nos arquivos pessoais dos pais das pessoas que estiveram na colónia, para perceber o contexto em que tinham sido presos. E as entrevistas também foram uma peça fundamental – com antigos membros da colónia, com os pais de alguns deles, e com outras pessoas que viveram naquela altura, como Teresa Dias Coelho e Margarida Lisboa. Aqui, o encenador conheceu Manuela Canais Rocha, de quem a história viria, aos poucos, a tomar conta da peça.

Sentada a uma mesa de madeira, de costas para o público, está ela – a Manuela. Só lhe vemos as costas e o cabelo entrançado. O rosto não conhecemos, mas é dela a voz que começamos a ouvir. “Eu confio em ti para contares a minha história”, diz mais do que uma vez. Os actores, em pé à sua volta, reiteram-no. A sua história vai ser contada, por ela e por eles, sem grandes dramatismos, garantem. Manuela cresceu na clandestinidade. Os pais conheceram-se na antiga URSS, voltaram para Portugal e, a dada altura, a mãe engravidou. Manuela nasceu em casa e só foi registada anos mais tarde. Lembra-se de mudar de casa com frequência. Como não via bem precisava de óculos, não aprendeu logo a andar. Também se lembra de brincar com os pais e da sua irmã bebé. E lembra-se ainda de quando tudo começou a ficar mais claro – de quando a mãe foi levada por pides. Se a memória não lhe falha, essa foi a primeira vez que ouviu o nome da mãe. 

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Com o tempo, a Manuela começou a falar mais, a partilhar mais, e o palco foi-se tornando cada vez mais dela. “Eu surpreendo-me muito com o sincronismo no teatro. Há este poder na representação de uma constante actualização das histórias e de como elas podem rapidamente tornar-se tão contemporâneas”, continua Marco Martins. “E, como também acontece no Pêndulo [espectáculo de 2023, encenado por Marco Martins e que protagoniza oito mulheres imigrantes que são cuidadoras informais], a Manuela agarra no espectáculo e transforma-o num momento de homenagem aos pais dela. E a história continua. A história dela continua de uma forma que deve ser inesperada e, ao mesmo tempo, libertadora.” 

Mas Manuela não está sozinha. A seu lado, juntam-se outros companheiros da colónia, como Valentina Marcelino, Olga Sequeira Santos ou Domingos Abrantes. Conceição Lopes, que a determinada altura toma o lugar de Manuela à mesa, foi monitora da colónia naquele Verão de 1972. No total, eram 18 crianças, entre os três e os 14 anos, que partilhavam esta casa de férias nas Caldas da Rainha. Daquelas semanas, recordam vários momentos, entre eles um espectáculo de fantoches e, em especial, uma ida à praia, em que acenaram e gritaram em direcção ao Forte de Peniche, na esperança de que algum pai os visse. Na colónia, alguns, como Manuela, conheceram pela primeira vez outras crianças que estavam a viver na mesma solidão que eles e aprenderam a brincar em conjunto.

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DRManuela Canais Rocha e a irmã

Inicialmente, a peça era para ser representada apenas pelos ex-membros da colónia, mas depois Marco Martins percebeu que precisaria de actores. Até porque era importante perceber os contornos da experiência de quem esteve na colónia de férias. “Havia um caminho para contar a história, para contar a história aos meus filhos, a uma nova geração. E tinha de começar atrás, num espaço em que tinha de ser eu a contar o que era o Estado Novo e o que eram as prisões para nós percebermos porque é que aquela colónia foi tão importante para as crianças. Isso tinha de ser um trabalho de dramaturgia”, explica.

Aqui, surgiu também a vontade de ter em palco um grupo de jovens, que representasse uma nova geração. Escolhidos de várias escolas de Lisboa, como o Liceu Camões ou a Escola Secundária Padre António Vieira, estes jovens pretendem retratar um presente que, apesar de contrastar de várias maneiras com o passado, não deixa de estar ligado aos acontecimentos que são retratados. Em palco, ao passo que Manuela habita o andar de cima, eles falam e movimentam-se no andar de baixo. “Se eu fosse falar disto, eu também gostava de ouvir os miúdos, gostava de ter o contraditório, sair da cassete. Isto tem uma cassete e por isso é que não entra nos ouvidos, porque é falar para quem já está evangelizado”, acredita, já que “ao estabelecer esse diálogo, dá-se a mistura. Aquilo é o futuro, porque é o passado e o presente e estás a apontar para a frente, não para trás.”

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DRB Fachada e o coro de oito raparigas

É neste cruzamento que diferentes dispositivos teatrais relevantes para a narrativa vão encontrando o seu lugar. Quer estejamos a ouvir gravações dos próprios intérpretes, ou a ver fotografias, documentos e relatórios da prisão, há um elemento que se destaca – a música. De facto, a música de intervenção teve um papel importante na Revolução e, por isso, não é deixada de lado. É da autoria de João Pimenta Gomes e de B Fachada. Este último lidera um coro de oito raparigas do Coro Infantil e Juvenil Lisboa Cantat e do Conservatório do Vale do Sousa que vai intervindo ao longo da peça. Além de composições originais, o repertório conta com canções de José Afonso e com o “Hino de Caxias”.

Quando chegamos ao fim, Manuela já se virou para nós há algum tempo. Vemos o seu rosto e, no seu olhar, tudo aquilo que ela viveu, em casa, em Caxias, na colónia. Não ficamos indiferentes e também não o ficam quem está com ela em cima do palco. Uns porque o viveram, outros porque sabem que, mesmo que cronologicamente distantes do quadro retratado, esta também é a sua história. Aliás, é a nossa história. “Tem este aspecto colectivo, porque há uma diferença geracional muito grande. De um pensamento colectivo, passa-se para um pensamento individual e, nesse aspecto, é muito bonito estar a fazer uma peça que é colectiva, feita por todos”, remata Marco Martins.

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No futuro, a ideia passa por transpor a história de Manuela para filme, também realizado por Marco Martins. Mas, primeiro, há que estrear A Colónia no palco.  

Culturgest. 5-14 Dez. Qua-Sex 21.00, Sáb 19.00, Dom 17.00. 16€

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