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Um médico português é chamado a uma roça de cacau em São Tomé e Príncipe para tentar perceber a origem de uma misteriosa doença que assola os "serviçais" da plantação. Lá chegado, descobre que estão infectados pela banzo, doença conhecida como a nostalgia dos escravos. Estamos em 1907, numa altura em que a escravatura em Portugal estava oficialmente abolida há largos anos. Em concreto, e em decreto, desde 1869 em todos os territórios ultramarinos. Mas a realidade era bem mais trágica. Margarida Cardoso, que tem dedicado a sua carreira às temáticas coloniais e pós-coloniais, escreve e realiza Banzo, longa-metragem que chega às salas de cinema a 23 de Janeiro. Estivemos à conversa por telefone com a cineasta.
Margarida Cardoso não faz de propósito, mas quanto mais mergulha nas histórias do nosso passado colonial, mais matéria-prima vai acumulando nos seus arquivos. E depois uma coisa leva à outra. Neste caso, Understory (2019), filme híbrido entre documentário e ficção, fez nascer Banzo. “[Understory] tem como base a planta de cacau e depois vários tempos e histórias à volta dessa planta. E o primeiro movimento que fiz para esse filme foi ir a São Tomé para fazer esta ligação também ao nosso ex-território”, recorda Margarida Cardoso. Por lá, encontrou “um portal para o passado”, entre ruínas e memórias. “São coisas que não interessam a grandes histórias, digamos, a uma certa historiografia, que eram as histórias das roças, das plantações, onde tens aqueles pequenos bilhetinhos que toda a gente deitaria fora. Encontrei um arquivo onde tinha muito isso, por exemplo, dos capatazes”, destaca. Ao desenrolar este fio, essencialmente ligado a serviços administrativos e governamentais, começou a interessar-se em contar uma história que descreve como “complexa”.
É o olhar de Afonso, o médico português interpretado por Carloto Cotta, que nos conduz pela narrativa desenhada por Margarida Cardoso. Afonso não é o personagem principal, mas sim o personagem central. “Não é um personagem típico dos filmes, onde o personagem é que arrasta a narrativa, o personagem é que sofre uma transformação. Todos esses cânones, digamos, de uma narrativa mais aristotélica, não existiam no meu personagem, porque eu não o pensei assim”, explica Margarida Cardoso, que introduziu no argumento um outro personagem fundamental para a narrativa. O fotógrafo Alphonse (Hoji Fortuna), um fotógrafo itinerante negro, inspirado num Alphonse real, que chega à roça em busca de clientes e em cujas mãos cai o papel de revelar o que se passa na plantação. E não é por acaso que têm o mesmo nome: “Quis fazer uma espécie de relação, como se na realidade eles fossem a mesma pessoa no mesmo mundo, ou como se o Alphonse fosse um tipo de agente secreto, quase como se fosse o que o Afonso não consegue ser, ou parte do Afonso”.
A rodagem decorreu em São Tomé e Príncipe, onde a produção encontrou ajuda para compor o grupo de serviçais moçambicanos do enredo. Em particular um “grupo raccord, que tem continuidade”, oriundo de uma comunidade, e antiga roça, chamada Água Izé. “O filme tem às vezes situações muito difíceis de representar. E falávamos todos juntos sobre essa representação e acho que toda a gente nos ajudou e compreendeu a situação”, recorda. Personagens que têm muito poucos diálogos no argumento, sendo representados como “tristes e calados”, uma opção que Margarida Cardoso considera “mais ou menos evidente”. “Eles são representados assim, mas é o ponto de vista onde eu me coloco e no filme realmente eu me coloco do ponto de vista do poder, de certa forma”.
Banzo foca um tempo numa escravatura dissimulada. Mas passados tantos anos do final da nossa ditadura, durante a qual se promovia um passado heróico nacional, porque é que histórias continuam ainda pouco presentes na nossa memória colectiva? Margarida Cardoso tem uma certeza: “Eu tenho muitas dúvidas em relação a muitas coisas que se escrevem sobre o passado colonial. Mas não tenho dúvidas nenhumas que nós, como portugueses, nunca conseguimos apagar o que foi esse nosso passado mais glorioso, porque nunca encontrámos nenhum outro discurso que pudesse substituir esse”.
A Costa dos Murmúrios (2004) ou Yvone Kane (2014) são apenas dois dos títulos que têm marcado a carreira de Margarida Cardoso, em larga escala dedicada às histórias das antigas colónias portuguesas. Com uma infância passada em Moçambique e uma atracção por estes temas que lhe parece correr nas veias, Margarida Cardoso acaba sempre por seguir este caminho. "Às vezes penso: não, este será o último filme, vou tentar, se calhar, não me meter em mais aventuras, mas vou sempre por aí. [...] Eu gosto de histórias um pouco romanescas e carregadas de personagens. O Banzo é isso e muitas vezes é isso que eu continuo a seguir no meu caminho".
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