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Cátia Mendes e Mariana Pereira abrigam-se numa nesga de sombra, entre um muro e um automóvel, para explicar a ideia que têm para o beco poente da Travessa Artur Lamas, no enclave entre as freguesias de Belém e Alcântara. "Não temos muitos espaços verdes e de estar por aqui. Então, surgiu a ideia de criar no beco um espaço de convívio, para todas as gerações", explica a primeira, formada em Engenharia do Ambiente, mãe de uma criança pequena e residente na zona. Espaços amplos há com fartura não assim tão longe, mas, ainda assim, é preciso percorrer 800 metros a pé, atravessando a Avenida Brasília, para chegar aos jardins do MAAT. Já na direcção da Ajuda, a Norte, posiciona-se um pequeno parque infantil – "não temos muito o hábito de ir para lá". Mas nenhum dos pontos é sentido como um lugar do bairro e da comunidade. E era preciso criar um.
"Temos um grupo de vizinhos no Whatsapp que é muito activo, onde as pessoas pedem contactos de canalizadores, avisam que o carro X tem as luzes ligadas, essas coisas e, um dia, numa conversa informal, surgiu a ideia" de transformar o beco formado por um muro da Casa Pia, outro da Universidade Lusíada e a parede de um espaço de telecomunicações num centro social de bairro, a céu aberto. A conversa passou a uma proposta enviada à Junta de Freguesia de Belém (sem resposta), avançou para uma petição (assinada por 264 pessoas), saiu em artigos na Mensagem de Lisboa e na RTP e envolveu um grupo de estudantes da Universidade Lusíada, que pensaram em diferentes hipóteses para pedonalizar o beco. "O Pedro Flores [vizinho e funcionário naquela instituição] falou com um professor para que um grupo de alunos fizesse o projecto final de curso sobre o tema, e um grupo de moradores foi à universidade falar com eles." No final, surgiram sete propostas e foi com elas que o grupo de moradores apresentou a vontade colectiva numa reunião descentralizada da Câmara Municipal de Lisboa (CML). "Assim não era só uma ideia no ar", sublinha Cátia, expondo os pontos principais do projecto: zonas para estar, para brincar e para sentar, sem carros e com sombras.
Na semana passada, a 17 de Julho, o grupo de vizinhos teve a primeira reunião com técnicos da autarquia, "que se mostrou bastante aberta" à proposta, nota Mariana, formada em Geografia e Planeamento, e vai começar a realizar visitas ao local. "Há muitos pormenores que têm de ser vistos, mas a verdade é que o que propomos não tem um grande impacto, não implica mudar muita coisa", complementa. Será preciso rebater passeios, criar uma zona de sombra (com coberturas em tecido, eventualmente, já que a plantação de árvores é considerada inviável no local em questão), melhorar o piso e pouco mais. "Há coisas que queríamos muito, como pôr árvores, mas que não são possíveis. Mas acho que do lado da Câmara, mesmo que isto envolva obras, há vontade e abertura para avançar", espera Mariana Pereira. Não quer dizer que o projecto se concretize, mas o caminho está a ser trilhado.
E os carros?
Como em muitas outras zonas de Lisboa, em Belém, ter lugar para estacionar é considerado um problema. A questão levou, inclusive, a Câmara de Lisboa e a Junta de Belém a autorizarem o estacionamento automóvel em cima dos passeios, recentemente. Mas a comunidade deste eixo Belém-Alcântara (note-se que o lado par da Rua Pinto Ferreira, perpendicular ao beco, é Alcântara, enquanto o ímpar é Belém) tem exigências bem vincadas quanto ao acesso ao espaço público e uma visão abrangente das suas múltiplas possibilidades de utilização. Para compensar a perda de cerca de dez lugares informais de estacionamento, o grupo propõe acompanhar a pedonalização do beco com a transformação dos lugares de estacionamento na Travessa Artur Lamas para um posicionamento em espinha, ideia que terá de ser avaliada pelos serviços técnicos da Câmara, mas que poderá servir como solução.
"Este espaço é grande. Assim não parece muito, mas se tirarmos daqui os carros, dá para fazer muita coisa", nota Mariana, que, mais tarde, na conversa com a Time Out, haveria de contar como 100 pessoas se juntaram sem constrangimentos numa festa de vizinhos. O beco é um espaço de cerca de 300 metros quadrados e, no momento em que visitámos o local, havia 13 carros ali estacionados.
Um teste com música, brincadeira, comes, bebes
Pedonalizar o beco não foi a primeira acção comunitária a acontecer neste ponto da cidade. Em 2021, alguns vizinhos insurgiram-se contra a edificação de uma residência para estudantes entre a Travessa Artur Lamas e a Rua Pinto Ferreira, alegando que a "densidade de construção já é extremamente elevada" na zona e "que o estacionamento é escassíssimo". Apesar da agitação e do lançamento de uma petição pública, não conseguiram, porém, travar o projecto. Mas outras coisas foram acontecendo.
Uma das primeiras partiu da iniciativa de alguns membros da Cicloficina da Junqueira (projecto sem espaço físico que acontece em diferentes pontos de Belém, como a Travessa Artur Lamas ou a Biblioteca Municipal), segundo a memória de Mariana, que organizaram um convívio no Dia dos Vizinhos, em 2018, em pleno beco da Travessa Artur Lamas, evento que se repetiu por pelo menos mais duas vezes, por organização espontânea dos vizinhos e na própria Travessa. Em Maio deste ano, os alunos da licenciatura de Jazz e Música Moderna da vizinha Lusíada juntaram-se à festa e deram um concerto a 24 de Maio. O dia seguinte foi passado a pintar o muro do Colégio Nuno Álvares, da Casa Pia ("falámos também com eles", detalha Mariana), a brincar e a conhecer alguns dos vizinhos que, até lá, eram nomes a piscar no telemóvel. "Estiveram aqui à volta de 100 pessoas e, ainda assim, havia espaço para estarmos à vontade, o que mostrou o que é possível fazer-se num espaço como este", ilustra Mariana.
Nem Cátia nem Mariana conseguem explicar ao certo como esta comunidade de vizinhos se tornou tão coesa. "Talvez por serem pessoas que já vivem cá há muito tempo", indaga a primeira. "Sentimo-nos um pouco esquecidos", arrisca a segunda, pensando na circunstância de estarem na fronteira entre as duas freguesias como um elemento aglutinador dos moradores. "Quando umas galochas da minha filha deixam de lhe servir, vou ao grupo do Whatsapp e ofereço. Também há pessoal a perguntar quem pode tomar conta do cão do outro durante as férias", exemplifica Cátia Mendes, que atesta: "A vizinhança é mesmo uma comunidade, que organiza e que faz."
Magnestimo ou não, até o Café Social, que abriu há dois anos na esquina em frente ao beco da Travessa Artur Lamas, tem vontades colectivas projectadas para o local. "Somos pessoas muito sociais, daí o nome do café. E gostamos de fazer actividades com a comunidade. Já organizámos uma festa dos anos 80, recebemos 190 convidados no nosso aniversário, tenho os números de telefone de muitos clientes... Se correr bem, a nossa próxima iniciativa vai ser uma festa na piscina, ali no beco", explica o co-criador do espaço, Shadi, libanês a viver há dois anos em Lisboa. Mas qual piscina? "Se a Junta de Belém nos deixar, vamos tirar os carros dali, por um dia, e instalar uma piscina insuflável. Já mandámos e-mail. Vamos ver o que dizem." Entretanto, a Time Out soube que o organismo não autorizou a realização do evento. Mas Shadi continuará a tentar mexer com o bairro.
Artigo actualizado às 10.45 do dia 25 de Julho de 2024, com a nota de que a Junta de Freguesia de Belém não autorizou a festa na piscina, sugerida pelos proprietários do Café Social, no beco da Travessa Artur Lamas.