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Um pouco como na vida contemporânea, também nesta tenda a família não é tradicional. Não há caravanas de tios, avós, sobrinhos e netos, qual Feios, Porcos e Maus, nem promessas de amor eterno. A Odivelas chegam uns, saem outros, vindos de Espanha, Alemanha, Turquia ou da América Latina, de companhias de circo, praças e semáforos, acompanhando os movimentos de uma relação liberal.
“Comprámos a tenda e depois começou a aventura de encontrar um terreno onde instalá-la de forma permanente. Vimos na internet, falámos com câmaras municipais, privados, tudo. Com as câmaras não correu bem. ‘Como assim ter um espaço para eventos culturais numa altura destas [durante a pandemia]?’ Mas fomos andando, até chegarmos aqui”, conta Lucía Gama, mentora do Zirkus Mond, uma tenda de circo permanente, talvez a única do país, onde se treina em conjunto uma vez por semana e se apresentam espectáculos todos os meses.
Há três anos que Lucía, de Badajoz, arrenda este terreno com vista para a muralha que marca o fim da capital. “Sabia que não havia nada em Lisboa. Também por isso achámos que seria boa ideia ter aqui o circo”, partilha, falando no plural por referência ao irmão, que fundou o Zirkus Mond em Berlim há sete anos, “praticamente no centro da cidade”, a três quilómetros da Alexanderplatz.
Em Odivelas, a tenda fica à porta do Bairro do Vale do Forno, junto à estação de metro do Senhor Roubado. De um lado, há uma oficina de automóveis, em frente, um pequeno terreno agrícola com ovelhas, no enclave entre um viaduto e um parque de estacionamento. É aqui que acrobatas, trapezistas e palhaços se juntam. No palco, uma bola cai. Çağla baixa-se para apanhá-la. A bola cai outra vez. Também um arco chegou ao chão, na outra ponta. Deverá ser assim nas próximas horas. “É um treino constante, diário.” Se a bola cair em dia de espectáculo, assume-me, já que este é um circo de proximidade, sem camarins. “Os artistas estão sentados ao lado do público. Levantam-se no momento em que vão actuar”, conta Tiago Rosário, da produção.
O público, por sua vez, não é o mesmo que espera pela chegada de uma tenda à terra, por altura do Natal. O Zirkus Mond está aqui “para que as pessoas venham ao circo como vão ao cinema ou ao teatro”. Muitos dos artistas são estrangeiros, habitantes ou de passagem por Lisboa. Alguns são os que vemos nos semáforos, da Praça de Espanha à Gago Coutinho, em cima de escadas e monociclos, fazendo mover fitas e arcos pelo ar. “Se tivéssemos mais sítios como este, e também mais apoios, talvez não precisássemos de estar na rua. Mas, para já, é assim”, há-de dizer-nos um deles, enquanto uma bola volta a cair.
“Estar do outro lado”
Com a ajuda de “um vizinho carpinteiro”, montadas a tenda, o Malabar (bar de apoio em dias de espectáculo), o balcão dos cachorros, as casas de banho, as mesas, as cadeiras e os aposentos para as residências artísticas, o primeiro cabaret aconteceu em Março de 2022, já com uma cooperativa cultural em marcha.
“Não foi fácil encontrar pessoas, sobretudo neste lado mais alternativo do circo” e num país onde a tradição na área não é forte, assume Lucía Gama. Coube à rede internacional de artistas fazer o Zirkus acontecer. Tiago Fonseca, por exemplo, é parte dela “há 20 e tal anos”. “Comecei no Chapitô, depois fui para Inglaterra e agora vivo na Alemanha. Sempre que passo por Lisboa, venho cá actuar e ensaiar. Numa cidade em que está tudo muito esquematizado e programado, é uma mais-valia ter um lugar como este”, defende Tiago. Palhaço, acrobata e malabarista, emigrou para poder continuar na área. Ironicamente, volta agora quase ao mesmo lugar onde cresceu, a vizinha Póvoa de Santo Adrião. “Vivi nos subúrbios toda a minha vida, sei o que é estar do outro lado”, afirma.
Estar no circo também é estar do outro lado. A tenda é a “anti-catedral da cultura”, como se diz em França, sofrendo, por isso, dificuldades no terreno dos apoios públicos e, por vezes, no do reconhecimento social. “Já a cultura que existe é mínima, quanto mais de circo. O mesmo se pode dizer sobre os apoios”, brinca Tiago, olhando para o panorama português. Apesar de tudo, a comunidade cresce, sobretudo a norte, casa de festivais como o Imaginarius (Santa Maria da Feira), do Instituto Nacional de Artes do Circo (Famalicão) ou das companhias Erva Daninha (Porto) e Nuvem Voadora (Vila do Conde).
Mais de 2000 companhias na União Europeia
Passando a fronteira, o circo contemporâneo ganha força. Num artigo de 2022 do jornal francês Le Figaro, a secretária-geral da associação Territoires de Cirque (que representa mais de 60 entidades), Delphine Poueymidanet, dava conta da existência de 55 tendas em França em comparação com cerca de dez em 2017. O crescimento registou-se depois de o circo ter experimentado, durante alguns anos, as salas de teatro, percebendo que afinal não seria ali o seu lugar. “A ideia de circo está ligada à acção: o corpo está constantemente envolvido em questões que estão na origem do perigo. No circo, tenho de garantir que o meu parceiro não cai. No teatro, basta desempenhar um papel mostrando que ele não vai cair”, explicava no mesmo artigo Alexandre Fray, acrobata e director da companhia Un loup pour l'Homme.
Hoje, há 73 escolas de circo na Europa, segundo o observatório Circostradata. Quanto a companhias, seriam entre 1600 e 2100 (500 das quais em França, 350 na Alemanha) na União Europeia, em 2018, de acordo com o relatório A situação do circo nos Estados-membro da União Europeia, publicado em 2020 e no qual Portugal está longe de se destacar.
Lucía não sabe fazer malabarismos, não tem queda para trapezista, mas acha que o circo, como outras artes, faz falta. “O nosso objectivo é que se possa viver do circo e com o circo”, explica. Em Berlim, onde a tenda irmã do Zirkus Mond, a par de muitas outras, é local de culto, a falta de apoios não é sequer parte da matéria. A autonomia está na bilheteira, porque há público. É aí onde esta tenda de Odivelas quer chegar.
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