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Não é óbvio, mas a maior fonte de ruído numa cidade como Lisboa é o trânsito automóvel. "Se perguntarmos, as pessoas talvez dirão que são os aviões ou outra coisa. Mas é um ruído [o dos automóveis] de tal forma enraizado no nosso dia-a-dia que já se tornou uma base considerada aceitável, sobre a qual se sobrepõem todos os outros barulhos", começa por afirmar João Pedro Pincha, jornalista do Público e autor do mais recente livro da colecção Retratos, da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Em Ruído – Lisboa, uma cidade que não se cala, um livro que não se quis técnico nem académico, o jornalista recorre às suas armas de profissão – a pesquisa e a entrevista – para traçar um retrato de uma cidade mais desperta para o excesso de ruído desde que viveu o silêncio da pandemia. "Foi uma oportunidade para percebermos que vivíamos num contexto muito ruidoso, mas ao mesmo tempo tornou-se desconfortável porque sabíamos que associadas ao silêncio estavam as ideias de doença, praga, morte. O silêncio é encarado como um sinal de perigo, de ausência de vida. Por isso, este trabalho também serve um pouco para reflectir o que queremos: silêncio ou apenas sossego?"
Ficando a pergunta em aberto, pode dizer-se que sabemos, sim, o que não queremos. O ruído, sublinha o autor, está "associado a um número bastante elevado de mortes prematuras", ao causar problemas de sono, de stress ou sendo um factor de risco de doenças cardiovascular. Por outro lado, há efeitos comprovados sobre o desenvolvimento cognitivo. "Crianças que frequentem escolas junto a estradas ou sujeitas ao ruído sistemático dos aviões têm mais dificuldades de aprendizagem", sustenta o jornalista. Para não falar de consequências óbvias, como a perda de concentração ou de capacidade auditiva.
Com as traves da evidência científica e do que está a ser estudado sobre os efeitos do ruído na saúde e na qualidade de vida das populações, o autor partiu de conversas com especialistas e lisboetas, passando por filmes como Lisbon Story (longa de Wim Wenders cujo sonoplasta João Pedro Pincha chegou a entrevistar) ou Playtime (Jacques Tati), para desbravar o tema. Foram as conversas que acabaram "por estruturar o livro", explica, que se divide entre o tráfego rodoviário, o aéreo e o ruído provocado pela actividade da vizinhança e da vida nocturna.
A proibição por decreto e o fim do aeroporto
"As cidades vão ter sempre gente a morar nelas e actividades económicas em paralelo. Mas o ruído nunca foi levado a sério pelos sucessivos governos e câmaras municipais, nem nunca esteve no topo da agenda", defende João Pedro Pincha, trazendo à conversa o arranque do livro publicado esta semana, de 23 de Setembro. "Começo o livro a dizer que o ruído foi proibido por decreto, nos anos 50. Mas era mais uma coisa para ficar bem do que para cumprir", conta. Outro episódio histórico: "Em 1974, a RTP fez uma reportagem em Alvalade, em que as pessoas queixavam-se que não conseguiam dormir por causa do barulho dos aviões e dizia-se, com muita certeza, que o aeroporto ia sair da cidade passados poucos anos." Não saiu e a discussão do momento, além da construção de um novo aeroporto, é a expansão do actual, opção recusada esta quinta-feira, 26 de Setembro, por unanimidade pela Câmara Municipal de Lisboa (embora Carlos Moedas tenha afirmado que não se revê “na maior parte da linguagem da moção" votada em reunião de Câmara), que instou o Governo, ainda, a pôr fim aos voos nocturnos. Encerrar o aeroporto num prazo inferior a dez anos foi outra das exigências feitas.
"Está mais do que comprovado que a proximidade dos aeroportos às cidades tem efeitos graves. Agora, vamos esperar para ver", diz João Pedro Pincha, apontando para o facto de Portugal estar na segunda posição entre os países integrantes da Agência Europeia do Ambiente com maior percentagem de população exposta ao ruído provocado pelo tráfego aéreo. "Em Lisboa [a segunda cidade que mais sofre com este tipo de ruído], cerca de 15% da população está exposta a muito barulho dos aviões", acrescenta. E que consequências tem essa exposição? A maior é a interferência na qualidade do sono, como explica o jornalista. "Uma das grandes prioridades da indústria aeronáutica e das universidades que estão a investigar nesta área, na redução do ruído emitido pelas aeronaves, é evitar os despertares nocturnos." As previsões, no entanto, são de que, pelo menos nos próximos anos, não aconteça uma grande evolução nesse sentido, pelo que a poluição sonora deverá manter-se em níveis não muito distantes dos actuais.
No plano térreo, também as queixas se avolumam em Lisboa, pelo incumprimento do regime de horários de funcionamento dos estabelecimentos de venda ao público, decretado em 2016, ou quanto ao Plano de Acção do Ruído de Lisboa, aprovado em 2015. "Há muita investigação a ser feita sobre como compatibilizar a vida nocturna com a diurna e, em várias cidades, vão-se testando diferentes experiências, como disseminá-la por diferentes zonas ou dar outros usos, durante o dia, a espaços que funcionam como bares ou discotecas à noite. São medidas que podem não reduzir o ruído, mas que criam algum sentido de pertença" quanto aos estabelecimentos de diversão, muitas vezes considerados intrusos do que habitantes da mesma cidade.
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