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Organizaram um concerto numa estufa em Massamá, outro num ringue de boxe de Mem-Martins. Levaram Ana Lua Caiano, antes da sua explosão como artista, a actuar para “meia dúzia” de pessoas na Biblioteca Municipal de Sintra. Lançaram fanzines, projectaram filmes num quintal, engendraram encontros de escritores. Montaram uma feira de artes e artesanato no Mercado da Serra das Minas. Um dos objectivos da associação Clarabóia, formada no início deste ano, era que na linha de comboio de Sintra surgisse um fluxo fora do comum. Que das estações do Cacém, Monte Abraão ou Mem-Martins não se seguissem sempre os avisos da linha número 4, que leva até ao Rossio, à procura de cinema, música, performance ou artes plásticas.
“Queríamos criar um movimento contrário ao habitual. E, claramente, isso já está cumprido”, afirma Nuno Cintra, 25 anos, da Portela de Sintra, um dos fundadores da Clarabóia, associação formalizada este ano, mas com o portfolio a crescer desde a pandemia, à boleia de eventos como o Sintra con-cê (de conversas a concertos), o Rebentos (mostra de cinema emergente), o Decomposição (mostra de compositores) ou a feira Amálgama. A Clarabóia dá agora o salto para o seu primeiro grande festival, o Clarão, marcado para os dias 12 a 15 de Setembro, na Quinta da Ribafria, na Várzea de Sintra, momento que é uma espécie de reunião de todas as coisas que foram fazendo até aqui.
No cartaz entram artistas emergentes, mas também nomes conhecidos. Vão soar a pop de Iolanda (que representou Portugal na Eurovisão) e de Soluna, o rap de Landim e de nastyfactor, o ritmo tradicional das Batukaderas ou a electrónica experimental do Coletivo Lenha. Pelo menos metade dos projectos são do concelho de Sintra, “nascidos de um processo de miscigenação e fusão de diferentes heranças e abordagens”, contextualiza a associação, sem perder a coerência. No cinema destacam-se Mistida, a curta-metragem de Falcão Nhaga que foi a Clermont-Ferrand e a Cannes, ou a longa de Pedro Henrique, Frágil.
Mas há também oficinas, debates, instalações ou uma jam session, sem esquecer a conversa e o novo. “Quisemos envolver, desde o início, artistas que não conhecemos. Por isso, fizemos uma open call, para não estarmos presos às nossas bolhas”, conta Nuno, que faz a visita guiada ao recinto. “Aqui, no relvado junto ao labirinto, vamos ter o palco secundário”, no palacete reinará uma exposição colectiva e o palco principal será no antigo corte de ténis. Ao longo de um percurso ladeado de pilares em pedra serão colocados painéis com arte urbana e haverá, ainda, uma feira de 50 artistas e uma instalação visual e sonora (sem faltar a comida e bebida, claro). Em gesto de balanço, Nuno olha à volta e resume: “Há uma faísca, definitivamente.” E Giulia Dal Piaz, 26 anos, de Lisboa, apanha a bola: “Vamos ver se vira um clarão.”
"Começámos a ter mais voz"
“Às vezes tínhamos de ir a Lisboa para ver artistas que viviam ao nosso lado”, retoma Rita Teixoeira, 25 anos, de Massamá, ao que Giulia acrescenta, um tom acima: “Havia artistas que já tinham ido ao estrangeiro, mas que nunca tinham tocado aqui.” Deixou de ser assim? Em parte. Como na vida de qualquer associação, que começou como um movimento informal de amigos em 2021, uns ficaram, outros saíram, outros apareceram pela primeira vez. “No início correu mesmo muito bem. Estávamos na pandemia e conseguíamos fazer coisas quando mais ninguém conseguia”, recorda Nuno. “É só uma observação minha, mas desde que surgiram movimentos como a Clarabóia, começámos a ter mais voz. É um processo lento mas que tem resultado, também porque temos uma matriz muito colaborativa, queremos sempre envolver outros grupos e projectos e isso torna tudo mais dinâmico”, enquadra Rita. Foi assim, aliás, que a faísca começou, quando a Clarabóia ainda não o era, e colaborava em cafés e salas de estar com as associações Dínamo, também de Sintra, e a da A3, de Mafra, entre 2021 e 2023, a tentar fazer mais pelo segundo maior concelho do país.
Se a ideia era trocar o ritmo aos passageiros, associada a isso vinha também a vontade de “actualizar o panorama cultural de Sintra, dar espaço a artistas emergentes, de uma forma transversal” ao território. Não há salas no Cacém, em Rio de Mouro, Meleças? Faz-se acontecer num bosque, numa biblioteca, num centro da juventude, valorizando “espaços que são considerados dormitórios, através da arte”. “Há lugares por onde passámos durante anos e que não eram nada, mas que podemos dinamizar”, explica Rita.
E as salas? Na freguesia de Algueirão-Mem Martins, a mais populosa do país, com perto de 70 mil habitantes, o cineteatro Chaby Pinheiro fechou em 1989. Hoje não há um teatro ou cinema. Na Tapada das Mercês, usa-se a Casa da Juventude como lugar de espectáculos. Na Portela, já a chegar à vila, chegou a existir o Sintra Cinema, encerrado desde a década de 90 e agora em vias de ser reabilitado (a abertura do espaço, como multiusos, não acontecerá antes de 2026). É claro que existem o Centro Cultural Olga Cadaval, o Museu das Artes de Sintra (MU.SA) ou a Casa de Teatro de Sintra (sede da associação Chão de Oliva), com programação regular. Também o Palácio Nacional de Queluz, na outra ponta do concelho, acolhe diferentes tipos de eventos. E há ainda coisas mais intimistas e experimentais aqui e ali, a acontecer entre lugares como a Adega Viúva Gomes (Colares), a Casa do Fauno (Sintra) ou o Garagem Café (Sintra), para dar alguns exemplos. Em tudo o que é mais institucional, ainda assim, “tem de se atingir um grande grau de popularidade” para conseguir lá chegar, na visão de Nuno. Ao mesmo tempo, a oferta não chega em proximidade e diversidade, como dá a entender Ivânia Pessoa, 27 anos, do Algueirão: “Eu sou de Artes Visuais. Para ver coisas novas tinha de ir para fora. E o MU.SA era sempre a mesma coisa.”
Entrada grátis e transporte garantido
Além da aposta no local e da criação de novas janelas, nos eventos organizados pela Clarabóia, há duas qualidades essenciais: ficam sempre a uma distância aceitável (a pé) de uma estação de comboio (ou de outro meio de transporte público); e são gratuitos. Como na letra da música do MC nastyfactor, de Mem-Martins, que entra no alinhamento do festival de Setembro, “ninguém vai pagar entrada”. Quanto à mobilidade, a primeira excepção acontece precisamente no Clarão, mas os organizadores conseguiram dar a volta. “A estação da Portela ainda fica um pouco longe, mas vai haver autocarros gratuitos até aqui nos dias do festival”, assegura Nuno, enquanto nos conduz pela Quinta da Ribafria.
Feito o trajecto, caminhar, só se for nos 13 hectares de bosque, jardins e antigos terrenos agrícolas geridos pela fundação CulturSintra (entidade pública de direito privado, instituída pela Câmara Municipal de Sintra). A quinta, que esteve durante anos abandonada, reabriu ao público em 2015 e, desde então, tem sido palco de festivais, encontros e outros eventos, ou de simples passeios de domingo impulsionados pela entrada gratuita no espaço seiscentista.
Nos planos para a quinta, atente-se, já esteve um hotel de luxo. Em 2014, dizia Basílio Horta, o presidente da Câmara, citado pela agência Lusa: "A ideia é transformar [a Ribafria] num belíssimo Grande Hotel." As obras ficariam a cargo de quem vencesse o concurso e no exterior, aberto ao público, aconteceriam “espectáculos de ópera e de música”. O capítulo seguinte é algo a que não estamos habituados: a ideia do hotel caiu e a da cultura vingou.
Pela quinta já passaram várias vidas, a começar pela de Gaspar Gonçalves, cavaleiro e fiel vassalo do Rei D. Manuel I (leia-se assim o estilo manuelino do edifício) e do filho, D. João III, que mandou construir o solar em 1541. O espaço foi mudando de mãos, até parar ao presidente da CUF, Jorge José de Mello, e ao seu último proprietário antes da Câmara, o Instituto Progresso Social e Democracia (actual Instituto Francisco Sá Carneiro), altura em que a Ribafria funcionou como um “local de retiro” da social-democracia durante os governos de Cavaco Silva.
Quinta da Ribafria (Várzea de Sintra). 12-15 Set, Vários horários. Entrada livre.
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