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O ano de 1983 marcou o primeiro encerramento do Rock Rendez-Vous. A influente sala de concertos lisboeta ajudou a divulgar algumas das mais importantes bandas de rock português, como Xutos & Pontapés, GNR, UHF, Aqui d'el-Rock, UHF ou Táxi. Em 1983, o encenador Rafael Ligeiro, de 23 anos, não era vivo, nem sequer um plano para os pais, que, provavelmente, estavam mais ocupados a ouvir “Chico Fininho” ou “Patchouly”.
Aliás, em 2024, ano em que começou a trabalhar na peça Encore – a partir do Rock Rendez-Vous (que vai estar no CAL – Centro de Artes de Lisboa de 6 a 16 de Março), o jovem nunca tinha ouvido falar deste espaço. “Inicialmente, fui contratado para escrever esta proposta. A parte da encenação é posterior”, diz à Time Out. Este projecto começou com uma vontade de Telma Grova, responsável pela direcção de produção e fundadora da Maria49, de criar um espectáculo sobre o rock português dos anos 80.
Depois de um processo de investigação, que envolveu livros, documentários e entrevistas com personalidades como Alex Cortez dos Rádio Macau, que actuou no Rock Rendez-Vous, ou a jornalista e escritora Joana Stichini Vilela, que escreveu o livro LX80, Rafael chegou à conclusão de que, mais do que sobre uma pessoa, a história devia existir em torno da sala de espectáculos. “Interessei-me pelo espaço e percebi que ele tinha tudo o que eu procurava. Um dos momentos-chave foi quando percebi que não existia uma resposta definitiva para a razão que levou ao encerramento do espaço. Isto deu-me a liberdade para criar. Um espaço que nunca teve um fim”, descreve o encenador.
Esta incerteza levou à criação de quatro personagens fictícias – interpretadas por Alexandra Pato, Duarte Romão, João Clara Bandeira e Nazaré Sousa-Coutinho –, que formaram uma banda fictícia e que assumem o protagonismo de Encore.
Questionamos o encenador se alguma destas personagens foi inspirada por figuras míticas que passaram pelo Rock Rendez-Vous, por exemplo Zé Pedro dos Xutos ou Xana dos Rádio Macau, mas Rafael reforça que estas figuras “não têm pais, não têm futuro, não existiram”. “Tentei fugir à ideia de uma personagem fixa. Gosto de olhar para elas como figuras”, diz, acrescentando que a única pessoa real que inspirou o guião foi Tó Melga, uma figura querida no Rock Rendez-Vous – interpretado por Carlos Paiva – que servia como DJ ou técnico de som. “Mas os restantes não existem. Isso foi um dos maiores desafios. Se nenhuma destas pessoas existiu mesmo, vamos assumir isso. Não quero que este seja um trabalho documental. Estamos a beber de um universo muito rico e tentámos ser fiéis ao espírito do rock dos anos 80, mas é uma ficção completa”, assume.
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Enquanto alguém que não passou pelo Rock Rendez-Vous e que não tem grande ligação ao rock desta década – Rafael é um trompetista e assume que tem mais carinho pela MPB, o jazz ou até o heavy metal – este distanciamento permitiu que o encenador pudesse desconstruir as pessoas e toda a cena musical.
“Uma das entrevistas que mais me inspiraram foi com a investigadora musical Rita Nabais. Algo que percebi foi que, apesar de não ter estado neste espaço, há uma coisa que é transversal a todas as gerações: a juventude. Todos fomos jovens e enfrentámos questões semelhantes. Isto era algo que me interessava e com a qual eu podia trabalhar. Já não precisava de ter o cunho pessoal de um sítio onde nunca estive. Não precisa ser um trabalho documental tão extensivo e rigoroso. Posso tratar este assunto numa zona emocional”, argumenta.
Parafraseando Rita Nabais, Rafael recorda uma das frases que acabou por se tornar no mantra da peça: “na altura, nasceu isto que nós chamamos de ser jovem, antes dos anos 80 isso não existia. Passávamos de criança para adulto. Em 80, nasceu o estar no meio”. “Isso fascinou-me”, acrescenta. “Este período de transição depois do 25 de Abril é uma das primeiras juventudes que tem características muito específicas e que influenciaram muito o rock que é feito. Era uma coisa muito jovem e directa. Abordava as paixões, as drogas, os abusos, os encontros, as bebedeiras, as chatices... era diferente daquilo que se falava, por exemplo, na MPB ou na música de intervenção, mas era aquilo que os mais jovens queriam e conheciam”, descreve.
No entanto, apesar de não ser a personagem principal, a música ocupa um lugar de destaque. Sem chegar ao ponto de ser considerado um musical, existe uma banda em palco, composta por Francisco Ganchinho, George Gadé e Tiago Leal, que interpreta versões de vários temas que marcaram esta época, e os actores também cantam ao longo da peça. Além das canções, é possível ouvir outras referências e easter eggs aos anos 80 no argumento. Durante o ensaio que a Time Out assistiu, conseguimos ouvir os personagens a mencionar os Sétima Legião, os Táxi, a “Welcome to the Jungle” dos Guns ‘n’ Roses e até o filme Kilas, O Mau da Fita.
Depois de tanto conviver com esta “realidade” e de ter ouvido tantas vezes “Chico Fininho” ou faixas dos Trabalhadores do Comércio durante os ensaios, perguntámos a Rafael Ligeiro se não ganhou um carinho especial por esta cena musical. A resposta continua a ser não, mas confessa que o espírito dos artistas é algo que o inspira. “O que me interessou no rock dos anos 80 – e que eu não tinha noção – foi o experimentalismo. Ver estas bandas jovens, como os Ocaso Épico, que não tinham formação musical e só queriam fazer música e sons. Interesso-me por esta vontade de experimentar que influenciou tantos outros artistas”.
CAL – Centro de Artes de Lisboa. 6 a 16 de Março. Qui-Sáb 21.00, Dom 17.00. 10€-12€
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