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Ensaios de Amália ou discursos de Salazar vão ser preservados no novo Arquivo do Som

Projecto de arquitectura do Arquivo Nacional do Som, em Mafra, foi apresentado esta quinta-feira. A partir de 2026, equipamento vai digitalizar a história sonora do país, de golos de Eusébio à transmissão da senha do 25 de Abril.

Rute Barbedo
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Rute Barbedo
Jornalista
Pedro Félix, coordenador do Arquivo Nacional do Som
Francisco Romão PereiraPedro Félix, coordenador do Arquivo Nacional do Som
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Olhemos para o quadro: o único conjunto do mundo de seis órgãos de tubos construídos para tocar em simultâneo, o Museu da Música, a sede do Centro Europeu de Música, um pólo de investigação em ciências musicais e o Arquivo Nacional do Som (ANS). O que ainda não está instalado em Mafra estará, dentro de poucos anos, fazendo da localidade do Oeste uma vila da música, num esforço concertado para tal, que vem dando sinais desde 2018. Na manhã desta quinta-feira, 27 de Junho, deu-se mais um passo nesse sentido, com a apresentação do projecto de arquitectura que venceu o concurso para a construção do futuro Arquivo Nacional do Som.

O edifício de cinco pisos é visto pelo atelier vencedor, o bracarense Carvalho Araújo, como uma “caixa-forte de um património inestimável”, conforme se lê no comunicado do Governo, partilhado com a Time Out pela Câmara Municipal de Mafra. Estando a construção prevista para 2025 e a inauguração para o ano seguinte, será aqui, a escassos metros do Palácio Nacional de Mafra, que a equipa técnica vai digitalizar um universo de cerca de meio milhão de itens sonoros (num prazo estimado de dez anos), retirando-os do risco de perda, por danificação dos materiais de suporte (de cilindros de cera a discos instantâneos, vinis ou cassetes), ou de desaparecimento.

Futuro Arquivo Nacional do Som, em Mafra
DR/Atelier Carvalho AraújoFuturo Arquivo Nacional do Som, em Mafra

A estrutura estará longe de ser uma fonoteca, ou seja, um espaço destinado à fruição de fitas e discos, tendo antes como missão principal a preservação de documentos que poderão ir de gravações de sons de pássaros a ensaios de Amália Rodrigues, discursos de Salazar, à transmissão da senha do 25 de Abril ou ao relato de quando Eusébio virou o jogo contra a Coreia do Norte, em 1966, como detalha à Time Out Pedro Félix, coordenador da equipa instaladora do Arquivo Nacional de Som, formada em 2019 e a trabalhar desde então numa sala da Torre do Tombo, em Lisboa. Não há, no entanto, limites. “Tudo o que é vibração é connosco”, resume o antropólogo de formação, justificando a urgência da constituição do Arquivo: “Este material foi sempre pouco cuidado, mas são documentos históricos, são memórias sonoras do último século", e sempre que toca um disco está-se a contribuir para a sua destruição.

Dos 500 mil itens sonoros espalhados por diferentes entidades, públicas e privadas, 170 mil reclamam "tratamento prioritário", já que foram fixados em suportes de uso limitado, como é o caso dos cilindros de cera, "desenhados para cerca de 15 reproduções, há quase 100 anos". Desde 2019, a equipa do ANS está a realizar um levantamento dos documentos sonoros a serem potencialmente digitalizados pelo arquivo. "Sabemos como estão e onde estão, temos uma noção muito detalhada da realidade", diz Pedro Félix, não deixando de apelar a quem tem este património em sua posse para contactar a estrutura, em prol da sua preservação. "Se, daqui a 100 anos, existir uma forma de ouvir o Vasco Santana no 'Lelé e Zequinha', que foi gravado nos anos 50, aí poderemos dizer que a missão foi alcançada", conclui o coordenador.  

Mais de 300 arquivos de som no mundo, o primeiro de 1899

Houve quem já comentasse com Pedro Félix que, no que toca à criação de um arquivo feito para preservar a memória sonora do país, Portugal vai com 100 anos de atraso. O antropólogo (não sozinho) anda desde o final dos anos 90 a pressionar diferentes entidades com vista a este objectivo, mas nenhuma tentativa avançou o suficiente. "No contexto português, temos esta instituição [Torre do Tombo, onde está a equipa instaladora do ANS e, por isso, onde decorreu a entrevista à Time Out], que começou a cuidar da preservação do documento textual. Depois, começou a perceber-se que era importante preservar documentos visuais, sobretudo a fotografia, e então foi criado o Centro Português de Fotografia. Para o material gráfico e impresso em múltiplos, veio a Biblioteca Nacional. Nos anos 80, surge o braço de conservação da Cinemateca, que tomou de certa forma funções arquivísticas, ao preservar para exibir. E o que ficava fora deste esquema? O som. A fixação do som é possível desde 1875, com o fonógrafo e o cilindro de cera. Em Portugal, desde 1880 a 1890. Portanto, é provável que existam sons dessa altura. Mas nunca se tratou da sua preservação", enquadra o responsável.

Pedro Félix na Torre do Tombo, onde a equipa do Arquivo está desde 2019
Francisco Romão PereiraPedro Félix na Torre do Tombo, onde a equipa do Arquivo está desde 2019

Ao que se sabe, o som mais antigo a nível nacional será uma gravação de canções e outras peças, de 1900, feita por uma empresa britânica no Porto. "Em 1913, há uma nota de um investigador que diz estar a utilizar um fonógrafo e, em 1935, surge a primeira nota a anunciar a necessidade de criar um arquivo de som", enumera o investigador, que colaborou na candidatura do fado a Património Cultural Imaterial da UNESCO e na coordenação da Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX. Só em 2018, afirma Pedro Félix, é que se "mudou de uma lógica 'que giro, vamos fazer um arquivo de som' para 'eh pá, como é possível não existir um arquivo de som?'. E isto fez toda a diferença. Deixou de ser um luxo civilizacional para passar a ser uma necessidade". 

O novo edifício vai contar com zonas de serviço, depósitos, laboratórios e outras infra-estruturas técnicas, escritórios e uma área aberta ao público, para a qual está prevista a realização de concertos, conversas, gravações ou outro tipo de eventos. "O programa contempla ainda o arranjo do espaço envolvente para uma utilização pública e uma futura, eventual, expansão do edifício do Arquivo", lê-se no comunicado do Governo. A construção do ANS será financiada pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), num valor total de 4,5 milhões de euros, e a aquisição de equipamento contará com o montante de 2 milhões de euros. 

Embora o Arquivo esteja projectado para Mafra, "está tudo pensado para que não seja necessário as pessoas deslocarem-se fisicamente para acederem a documentos", podendo fazê-lo por via digital, conforme explica Pedro Félix. Ao mesmo tempo, "não existindo constrangimentos de direitos de autor, de protecção de dados ou do direito à privacidade, o que está planeado é que todas as pessoas possam ter acesso a todos os documentos", nos seus formatos digitais.

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