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Entre a inércia e a rua, há uma heroína trágica a convocar-nos

A mais recente produção da Escola de Mulheres leva a palco uma heroína da tragédia grega que não é grega. Com texto de Lígia Soares e encenação de Marta Lapa, ‘Um nó apertado’ fala-nos da fascinante catástrofe da existência humana.

Raquel Dias da Silva
Jornalista, Time Out Lisboa
Um nó apertado
© Inês MatosUm nó apertado, de Lígia Soares, com encenação de Marta Lapa
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Não há cenário – não como o imaginámos –, e a intérprete – Tânia Alves, que co-assina a criação – encontra-se presa no seu próprio corpo, amorfo, mas ainda, de certa forma, de alguma forma, a resistir. “Eu estou aqui… porque eu não quero desaparecer como vocês”, diz esta heroína da tragédia grega que não é grega, mas sabe que não pode hesitar perante o fatal desígnio, como se lê na folha de sala de Um nó apertado. Com texto original de Lígia Soares e encenação de Marta Lapa, a 75.ª peça da Escola de Mulheres – uma co-produção com o Teatro Diogo Bernardes, em Ponte de Lima, onde teve estreia absoluta a 20 de Outubro – apresenta-se em Lisboa, de 25 de Outubro a 5 de Novembro, na sala de teatro do Clube Estefânia.

Trata-se de um inédito inspirado na figura das “mulheres trágicas”, como Hécuba e Cassandra, e insere-se no actual ciclo de programação, que se centra numa revisitação dos “clássicos [da Antiguidade]”, tal como aconteceu com o espectáculo de David Pereira Bastos dirty shoes don’t go to heaven, a partir de Eurípides e Sófocles, estreado em Junho deste ano. O esclarecimento é de Marta Lapa, com quem nos sentamos à conversa depois de um ensaio. “Como é hábito, desafiamos todos os anos grandes autores a escreverem para mim”, revela a encenadora, referindo ainda as duas temáticas em torno das quais se tem pensado a oferta: a memória, que é o eixo central para os próximos anos, e os textos trágicos, que foram, como já apontado, o foco em 2023.

Escrever sobre as heroínas trágicas. Foi esse, em resumo, o desafio lançado a Lígia, que acabou a propôr um monólogo para uma mulher que, condenada a viver em função de uma geração que não será a sua, é levada a cena para falar sobre “qualquer coisa sobre a falta de memória”. Mas o espectáculo em si, o que vemos em palco (com figurinos de Vítor Alves da Silva, música original de Sandra Martins e desenho de luz de Paulo Santos), foi construído em conjunto. Não só no que diz respeito à própria dramaturgia, que também se foi transformando durante o processo criativo, de interpretação e encenação, como à “procura pelo lugar no qual vive o exercício do pensamento desta mulher”, acrescenta Marta Lapa, antes de revelar que está a trabalhar pela primeira vez com a actriz Tânia Alves. “Foi fantástico compreendermos que procurávamos a mesma coisa, que as nossas inquietações eram as mesmas.”

Um nó apertado
© Inês MatosA actriz Tânia Alves, que interpreta a heroína trágica em Um nó apertado

Já as inquietações em Um nó apertado são as de todos. Talvez não pareça claro ao início, mas a memória é assim, às vezes falta, ou fazemos por isso, porque a alienação é a chave da felicidade. É o que se ouve por aí. A heroína interpretada por Tânia tem falta de memória, mas percebe disso, de “viver as coisas como se não estivessem já a acontecer”, como a crise, como a seca, como os incêndios, como as catástrofes naturais, que são as catástrofes humanas. E, vai ficando cada vez mais claro, o que nos acontece é e não é culpa nossa, o paradoxo da existência – não escolhemos cá estar, mas cá estamos, umas coisas não controlamos, outras só a nós podemos imputar. A questão é se esse peso absurdo, o de existir, nos leva à inércia ou à rua.

O veredicto só poderá ser dado no final, mas a tensão, entre repouso e desassossego, é palpável desde o primeiro momento. “Quem encontrou o lugar do corpo [que contrasta com o do pensamento] foi a Tânia e faz todo o sentido porque é o corpo dela que este texto atravessa; também atravessa o nosso, mas é ela quem tem de o entregar”, diz-nos Marta, que teve de perceber como resolver o problema da visibilidade, uma vez que a actriz está o tempo todo deitada. “Encontrámos esta disposição da plateia [em semicírculo].” Como o espaço cénico se encontra despido de artifícios, era inevitável – e essencial – aproximar o público da intérprete. “Há muita coisa a acontecer a este nível [o do olhar].” 

Para Tânia, o imobilismo serve não só para desafiar o público a acompanhar o que diz com mais atenção, mas também para reforçar as entrelinhas. “Com a privação do corpo, para mim o texto teve logo um eco muito diferente”, confessa. “Pareceu-me que seria um sítio justo, porque encaixa nisso que é o falarmos a partir de um lugar que não é o nosso [e que nunca sentiremos no corpo], mas também porque falamos sobre opressão, sobre lugar ermo, sobre peso. O meu eu disponível e potente nunca traria essa densidade. E esse foi o meu objectivo. Não foi pensar o que é que isto poderia querer dizer para a plateia, mas como é que eu poderia dizer aquelas palavras sem sentir que venho só falar e vocês vêm só ouvir.”

Mais do que ouvir, espera-se que cada um dos espectadores sinta também o incómodo que é não mexer, ou mexer pouco, tantos músculos, durante aproximadamente 50 minutos. “Seja porque reconhecemos o sítio, seja porque o reconhecemos apenas no outro e nunca o vivemos, seja porque o vivemos a uma outra escala. Tem muito a ver com escalas, com o sítio onde nós nos colocamos e se nós nos conseguimos colocar aqui e há toda uma dimensão, que pode ser geográfica até. Bastava colocar-nos noutro sítio do mundo para fazermos todo um outro exercício”, garante a actriz. “A proposta tem isso, essa convocação do lugar.” E de sair do lugar. Como dirá Tânia em palco, ainda a três páginas de dar por finito o manifesto, “fazer alguma coisa antes do sol do meio-dia”. Traduzimos: antes que o único estado possível seja a apatia e a prostração.

Espaço Escola de Mulheres – Clube Estefânia. 25 Out-5 Nov, Qua-Dom 21.00. 7,50€-12,50€

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