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Depois de uma edição online, a BoCA – Biennial of Contemporary Arts volta a pôr os pés na terra. E fá-lo com uma programação intensa e intensamente transdisciplinar entre vários espaços de Lisboa, Almada e Faro, passando por teatros, museus, praias, percursos de barco, espaços verdes. Neste terceiro round, a bienal convoca uma série de artistas nacionais e internacionais, estabelecidos e emergentes, para instigar novas criações e colaborações, reflexões cruzadas e olhares críticos sobre temas em torno dos afectos, da empatia, da ecologia, da multidimensionalidade dos corpos e o que eles trazem, dos discursos hegemónicos da História e seus legados, bem como possíveis reconstruções.
Gus Van Sant, Grada Kilomba, Miles Greenberg e Odete são os artistas residentes em 2021/22, aos quais se juntam nomes como a encenadora Mónica Calle, o realizador Pedro Costa, a compositora Sarah Davachi, a rapper Capicua, a coreógrafa portuguesa Tânia Carvalho e a coreógrafa brasileira Alice Ripoll, o filósofo Bruno Latour, os artistas visuais Diana Policarpo, Jonathan Uliel Saldanha, Andreia Santana ou os berru, entre muitos outros. À terceira edição, a BoCA lança ainda um novo projecto educativo, Andamento – Entre o Teatro e o Museu, dirigido a jovens entre os 18 e os 27 anos. Falámos com o director artístico, John Romão, sobre os destaques da programação.
Porquê o título-mote Prove You Are Human?
É a primeira vez que temos um título-conceito. Depois de termos sedimentado a nossa identidade – que assenta muito na questão da transdisciplinaridade e nesta viagem entre vários espaços culturais e geográficos – pareceu-nos que estávamos preparados para dar o passo seguinte e passar a ter um título em cada edição, que serve de mote para reflectir sobre a programação. Faz uma referência directa ao mundo digital, mas não se restringe a isso: queria pensar muito mais ao nível da nossa relação com o afecto, com a história e com o corpo – do outro e do nosso.
Em que medida a programação foi desenhada em torno dessas três dimensões?
Umas das coisas que me parecem importantes pensar na BoCA é haver um espaço que se abre a diferentes lugares de fala e de representatividade. O que interessa definir com este título é também uma nova agenda que contempla uma radicalidade afectiva ou uma “empatia forçada”, como diz a [artista cubana] Tania Bruguera, para os assuntos do outro. Aqui o outro pode ser o outro enquanto território artístico ou espaço cultural, em que propomos cruzamentos daquilo que, à partida, consideramos que não nos pertence, mas é também a visão de uma interdependência global em que nós nos inserimos enquanto seres vivos num ecossistema global, e daí o corpo. Quem nos vai poder falar sobre isso é o [filósofo] Bruno Latour e a [socióloga e encenadora] Frédérique Aït-Touati, na conferência-performance Moving Earths, mas também a Odete, que vai estar em conversa com a Frédérique Aït-Touati depois da apresentação da sua performance, On Revelations and Muddy Becomings. Temos também o Miles Greenberg, um jovem artista canadiano que vamos apresentar pela primeira vez em Portugal e que tem desenvolvido um trabalho em torno do corpo queer negro – estamos a produzir a sua obra de maior escala, Water in a Heatwave, que será nas Carpintarias de São Lázaro com oito performers afro-descendentes. Vale a pena ainda falar do António Poppe, que vai criar um novo espectáculo com o grupo de música cigana La Família Gitana, num encontro com o corpo do outro, de outras culturas e tradições.
A nível da história, o destaque mais evidente é a nova criação da Grada Kilomba, O Barco/The Boat, um dos projectos centrais da programação. Está ancorado numa instalação, constituída por 140 blocos de madeira queimada que formam a silhueta do fundo de uma nau e fazem referência ao espaço criado para acomodar os corpos dos africanos escravizados [durante a colonização]. A Grada escreveu um poema que foi traduzido para quatro línguas africanas e que vai ser gravado em alguns dos blocos de madeira, permitindo ao público descobrir esses poemas e encontrar sentidos. A outra dimensão deste projecto é a performance que a Grada está a desenvolver com o Kalaf Epalanga e que será apresentada com vinte performers de percussão, de canto e de dança da diáspora africana que recrutámos em Lisboa.
Em relação aos afectos, temos a Mónica Calle com Entre o Céu e a Terra, uma nova criação integrada no díptico que está a preparar para o Teatro do Bairro Alto. Neste primeiro andamento, a minha proposta foi que a Mónica – que tem trabalhado sempre numa escala tão intimista e em tanta proximidade com os corpos em espaços fechados – transpusesse essa intimidade para um espaço aberto, um espaço natural. Propus, então, que trabalhasse na praia nudista da Bela Vista, na Costa da Caparica, numa relação com o mar ligada à descoberta interior, aos afectos, à mulher, algo que ela tem desenvolvido há vários anos. Há aqui uma ponte com um outro projecto em que existe uma relação entre o feminino e a água: a instalação-vídeo da Anne Imhof, Untitled (Wave), em estreia nacional na Capela das Albertas, que era um espaço habitado exclusivamente por mulheres em reclusão.
Um dos eixos centrais da BoCa é desafiar os artistas a trabalharem com linguagens com as quais não costumam trabalhar. Este ano, o caso mais sonante é o do Gus Van Sant...
Sim. Muitas vezes essas linguagens já lá estão em potência. E é esse trabalho de escuta e de observação que eu gosto muito de fazer. Quando lancei o desafio ao Gus Van Sant de criar um espectáculo pela primeira vez, a resposta foi um imediato "sim", e isso revela o quão em potência estão essas ideias nos seus trabalhos. A proposta foi que ele fizesse uma criação para palco e ele decidiu que queria trabalhar num espectáculo de teatro musical sobre o Andy Warhol. Nos anos 90 ele já queria ter feito um filme sobre o Warhol. Já tinha um guião feito, seria protagonizado pelo River Phoenix, mas o guião não foi aprovado pela produtora e entretanto deu-se a morte do River. O projecto foi cancelado, mas o que não ficou cancelado foi este fascínio, esta investigação contínua que o Gus Van Sant tem feito em torno do Andy Warhol através de diferentes fontes de documentação e de amigos, que serviram para escrever este texto original com canções compostas pelo próprio. Em parceria com o Queer Lisboa, vai haver também uma retrospectiva do Gus Van Sant na Cinemateca.
Ainda nestes cruzamentos, temos o Pedro Costa com Os Músico do Tejo, num filme-espectáculo entre o cinema, o teatro e a música. A Capicua escreveu um texto de teatro para o Tiago Barbosa e a Tânia Carvalho está a desenvolver um projecto musical com o Matthieu Ehrlacher: em Lisboa vão trabalhar com o Rancho Folclórico da Casa do Minho e, em Faro, com o Grupo Folclórico de Faro. Depois há projectos especiais dentro do percurso de alguns artistas: o Gabriel Ferrandini está a desenvolver uma performance com o Coro Gulbenkian – ou seja, está a compor pela primeira vez para voz –, e o Jonathan Uliel Saldanha vai trabalhar pela primeira vez num espaço de natureza, a Estufa Fria, ele que tantas vezes transporta a natureza para dentro do palco, seja através do vídeo, da luz, do som. Aqui vai criar uma instalação sonora e visual para um percurso que as pessoas vão poder fazer durante uma semana, todas as noites.
Esta edição parece ter como um dos temas principais a questão da ecologia e da natureza, desde logo com o projecto A Defesa da Natureza. Podes aprofundar?
Esse projecto estrutura uma nova abertura... Há algo que sentimos hoje, e que advém muito da pandemia, que é reencontrarmos uma capacidade de nos submergirmos numa relação mais próxima com a natureza. A Defesa da Natureza surge como modo de celebração, tendo como ponto de partida os cem anos do nascimento de Joseph Beuys e de modo a dar lugar a novas criações. Divide-se em duas actividades: por um lado, fazendo alusão à obra de Beuys 7000 Carvalhos (1982), organizamos em Lisboa, Almada e Faro, em parceria com a Liga para a Protecção da Natureza, uma plantação colectiva composta por diversas espécies autóctones. É um projecto a dez anos. Vamos criar, assim, uma floresta de artistas: pegamos na frase icónica do Beuys, de que “todos podemos ser artistas”, para fazermos estas plantações com artistas mas também com a sociedade civil. Qualquer pessoa pode inscrever-se na open call. A outra actividade chama-se Quero Ver As Minhas Montanhas, com curadoria do Delfim Sardo e da Sílvia Gomes. Nesta geografia entre Lisboa, Almada e Faro, sete artistas [berru, Dayana Lucas, Diana Policarpo, Gustavo Ciríaco, Gustavo Sumpta, Musa Paradisiaca e Sara Bichão] vão criar sete acções performativas inéditas junto ao mar, ao rio ou num espaço verde. São sete sessões únicas nos sete fins-de-semana da bienal.
Consulte a programação detalhada aqui.
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