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É fácil presumir quem é a artista que, por estes dias, ocupa a galeria do Braço de Prata. Há mais de uma década que este é o universo pictórico de Tamara Alves – corpos femininos, por vezes despidos, outras vezes feridos ou com a emoção à flor da pele, animais realistas, muitos deles predadores selvagens. São duas peças de uma mesma poética que agora traz de volta à Underdogs, cinco anos depois da última (e única, até agora) exposição individual na galeria.
"And Your Flesh Becomes a Poem", adaptação de um verso de Walt Whitman, marca também o regresso da artista portuguesa às paredes brancas de um espaço expositivo. O trabalho, no entanto, também cheira a novo. No atelier, Tamara tem explorado novas técnicas e materiais, desafios auto-impostos por quem passou os últimos anos a explorar novos territórios na arte. "Esta exposição acaba por ter um pouco de tudo o que fui fazendo ao longo dos últimos anos. O dia da inauguração marca cinco anos desde a minha primeira exposição na Underdogs. As que fiz depois dessa foram mais pequenas e tiveram desde pintura em tela, o suporte mais clássico, e desenho, que está sempre presente, às aguarelas rasgadas", começa por explicar a artista.
Agora, junta tudo debaixo de um único tecto. Através do desenho, ritual preparatório que a acompanha desde os primeiros murais, experiencia o imprevisto e assume o erro das manchas de grafite. Nas aguarelas, a fragilidade do material e a efemeridade – um processo que Tamara define como "mais íntimo". "A primeira vez que expus as resinas foi numa exposição colectiva aqui, no ano passado. A ideia de encapsular no tempo, de criar profundidade e de ter uma distância, uma profundidade era algo que já buscava no meu trabalho", continua.
São 25 as peças que junta na Underdogs. A exposição inaugura esta sexta-feira, dia 24 de Janeiro, às 18.00. Até dia 8 de Março, os seguidores mais atentos poderão ver com os próprios olhos as últimas etapas do percurso feito pela artista. "Cada vez confio mais no meu instinto para criar", admite. O imaginário pode ser o mesmo, mas o corpo de trabalho é espelho de uma fase "mais madura", com a "atenção ao detalhe" ganha peso no atelier. Algo a que Tamara Alves também chama de "profundidade". "É algo que vou desenvolvendo e mostrando de outra forma – o instinto animal, os instintos primordiais, o jogo das palavras. Mas sinto que o meu manifesto se foi refinando e foi ficando cada vez mais profundo. Se antes era uma ligação aos instintos, agora mais do que isso é uma ligação a esta dualidade da condição humana, da efemeridade e da infinitude. São questões do dia-a-dia e para mim muito importantes", refere.
Na rua ou na galeria, mas sempre com os livros atrás
A ausência de cor é o primeiro sinal desta dualidade que Tamara quis imprimir no seu trabalho mais recente. A par dela, há a palavra escrita que jaz, muitas vezes camuflada, nas obras e que denuncia uma relação íntima da arte com os livros. Virginia Woolf, Charles Bukowski, Allen Ginsberg e Clarissa Pinkola Estés são alguns dos autores que transporta para as telas, papéis, resinas e madeiras. Numa das telas, a artista identifica um excerto de Woolf – every flower seems to burn by itself. Escrita ao de leve sobre a tela, evoca a flor como símbolo de força e resiliência.
Outro símbolo, o tigre – "animal que não ia buscar há algum tempo" –, andou às voltas durante dois dias, do atelier para casa, de casa para o atelier. "Vinha-me sempre um poema do [Jorge Luis] Borges, O Outro Tigre. E são dois tigres, que está ali um escondido. O outro tigre sou eu, então tenho uma familiaridade com aquela peça", explica. A tela está entre outras duas, que representam mulheres. O diálogo entre feras e mulheres é longo no trabalho de Tamara Alves, que projecta nos predadores, duais, as características do observador humano.
The Wolf Awaits: a exposição sai para a rua
É preciso sair da galeria e dar a volta ao quarteirão para ver a intervenção a céu aberto feita por Tamara Alves, a convite da Underdogs. Mais uma vez, mulher e lobo reclamam o espaço. Com The Wolf Awaits, a artista reafirma-se num território que nunca chegou a abandonar, o da arte pública. "A rua é importante. Pensei que tivesse um limite, por causa da idade, mas com calma tudo se faz", declara.
No final de 2024, Tamara esteve em São Paulo, no Brasil, como convidada internacional do festival NaLata. Foi lá que, aos 41 anos, pintou o maior mural da sua carreira – uma empena de um prédio de 12 andares ganhou cor a partir de uma frase de Clarice Lispector. "Sendo mulher, representando mulheres e bebendo de outras artistas mulheres, acabou por ser uma homenagem", afirma.
Se há 15 anos, combateu estigmas para vingar na arte urbana, hoje, Tamara Alves olha com optimismo para a geração de artistas que se lhe seguiu. Fala em mais mulheres, "muito talentosas e com menos medos" do que ela própria. "Mas é uma questão que ainda hoje é relevante. Porque é que não há mais mulheres na arte urbana? Acho que é estrutural. Quando estava a crescer, tinha três que eram as minhas referências. Por vê-las fazê-lo, pensei que também conseguia."
Em 2010, começou a pintar corpos nus na rua. Eram dias de frio na barriga e expor numa galeria um cenário distante. "Olho para trás e penso que fui corajosa. Sinto que todos os dias quebrávamos algum tipo de estigma. Eu, ou por ser mulher, ou por pintar um corpo nu, ou por ser mais irreverente. Era muito instintivo. Éramos artistas e queríamos ir para a rua fazer o nosso trabalho, também para comunicar uns com os outros, para pertencermos a algo. E aos poucos essa comunidade foi crescendo. A rua era a nossa galeria, sem que ninguém nos dissesse que não éramos bons o suficiente", recorda.
Tamara Alves não é imune aos momentos de nostalgia. Entre a precariedade dos murais e a validação do mercado da arte, veio ainda a publicidade. Pensar no começo da carreira, na rua, é pensar num espaço que, para si, continua a ser vital enquanto artista. Para ela, enquanto houver rua, o trabalho será sempre político. "Hoje em dia estamos todos muito ocupados. Lembro-me de quando surgia tudo no momento. Mas ainda hoje vou. Há um sítio de que gosto muito, na Trafaria, e dá-me imenso prazer poder ir e deixar coisas na rua só porque sim. Gosto do resultado, vale a pena", remata.
Nem só de arte clandestina se fez o trajecto de Tamara. O mestrado em Arte Contemporânea assinala a veia académica da artista, uma veia que vai voltar a explorar em 2025. Além de uma passagem já confirmada pelo festival Mar Motto, em Faro, será um ano de estudo e de procurar novos desafios dentro da produção artística – quem sabe, novas personagens ou narrativas. "Sei que o Júlio Pomar também se inspirou num conto do Borges para fazer uma série de tigres. Li algo em que ele dizia que gostava de efabular as suas personagens. Pensei: é isto que gosto de fazer também, porque na realidade acabo por contar algumas histórias na minha cabeça."
Rua Fernando Palha, 56 (Braço de Prata). Ter-Sáb 14.00-19.00. Até 8 Mar. Entrada livre
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