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Esta associação quer somar culturas sem colher tempestades

Organizam concertos, angariam fundos para que quem migra não deixe de ser músico, criam redes de cooperação. “Não queremos que acabem todos nas cozinhas”, explica uma das fundadoras da Soma Cultura.

Rute Barbedo
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Rute Barbedo
Jornalista
Saghar Hamidzade, Aixa Figini e Maria Kopke, da Soma Cultura
Francisco Romão PereiraSaghar Hamidzade, Aixa Figini e Maria Kopke, da Soma Cultura
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Quando se emigra, o básico preenche as preocupações prioritárias: habitação, alimentação, saúde, educação e emprego. Só depois começa a vir o resto. Mas quanto a este último factor, o emprego, que muitas vezes permite aceder a todas as outras entradas da lista, deve um deslocado em situação de fragilidade sujeitar-se "ao que há"? As fundadoras da associação Soma Cultura defendem que não. 

Iniciado o trabalho de integração com a comunidade afegã que começou a chegar a Portugal em 2021, refugiada na sequência da tomada de Cabul pelos talibãs, as três activistas perceberam que “era preciso assegurar as necessidades básicas”, tratando de trâmites burocráticos como as autorizações de residência, mas também impedir que acabassem “todos nas cozinhas a lavar pratos”, simplifica Saghar Hamidzade, afegã que cresceu nos Estados Unidos, fundadora da associação. Como argumenta a colega argentino-italiana Aixa Figini, “muitas destas pessoas eram músicos a 100% no Afeganistão”. “Não exigimos que seja igual aqui, longe disso. Aliás, sabemos que viver da música é extremamente difícil até para os portugueses, mas achamos que todas as pessoas devem ter o direito a expressar-se e muitas vezes as artes são o que mantém algumas destas pessoas vivas”, continua. 

Segundo a Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), desde o Verão de 2021, Portugal acolheu 1400 refugiados do Afeganistão. Em Janeiro do ano seguinte, nascia a Soma Cultura, que antes de se oficializar já se mexia para apoiar uma comunidade que desconhecia a língua e a realidade cultural do país de acolhimento, mas que dominava outra língua, essa sim universal, a música. Começou, então, a realizar concertos, que permitiram angariar fundos para a compra de instrumentos como a cítara, o rubab (instrumento de cordas) ou o dohol (percussão). “A partir daí, percebemos que havia uma forma de pôr as pessoas juntas”, explica a luso-brasileira Maria Kopke, também fundadora do colectivo.

Concerto do grupo Sons do Afeganistão, na SMUP
DR/Soma CulturaConcerto do grupo Sons do Afeganistão, na SMUP

Espécie de agência activista na área da música, a Soma começou a tecer uma rede na qual entram associações locais (como os parceiros regulares Fábrica do Braço de Prata e a Toca das Artes), poder público e organizações privadas com fins lucrativos. Do investimento saíram projectos como os Lisbon Pocket Concerts, actuações intimistas em espaços de cowork de Lisboa onde “habitualmente está outro tipo de migrantes”, chamam a atenção as dirigentes. Está também na calha uma temporada de 16 concertos, o Música em Bairros (projecto provavelmente a acontecer no final do ano e para o qual a Soma conseguiu o seu primeiro grande financiamento da Direção-Geral das Artes), cujo intuito é levar as sonoridades de diferentes países (do Afeganistão ao Peru, passando pela Índia ou Guiné-Bissau) para zonas “mais esquecidas” da Grande Lisboa, como Mem-Martins, Charneca ou Olaias. A ideia é permitir o acesso à cultura a “comunidades que enfrentam barreiras” na sua participação, ao mesmo tempo que se criam “oportunidades profissionais para músicos migrantes”.

Migrantes, mas locais

Para as três activistas que criaram a Soma, Saghar, Aixa e Maria, são várias as dificuldades sentidas pelos migrantes que chegam a Portugal, sendo que uma delas passa desde logo pelo conhecimento geral de que estão aqui e pertencem à comunidade local. “As pessoas não sabiam que este grupo de afegãos estava a viver em Lisboa”, recorda Saghar, com a colega, Aixa, a alertar para o facto de muitas das “promessas que lhes foram feitas” não terem sido cumpridas, o que levou muitos migrantes a trocar Portugal pela Alemanha ou para os Estados Unidos, por exemplo, onde o acesso a apoios sociais é “muito mais simples” e o apoio em si “muito maior”. E isso teve impacto na rede com a qual a associação trabalha: “No início, apoiávamos 18 músicos afegãos, agora são seis”, contabilizam. 

“Estava habituada à realidade dos Estados Unidos”, conta Saghar, “e confesso que estou um pouco chocada com todas as dificuldades que existem aqui para obter apoios”, compara, reconhecendo que nenhum país ou cidade está devidamente preparado para o "enorme desafio actual das migrações", mas acreditando a fundo, como todas na Soma, na ideia de uma multiculturalidade em paz. “Grande parte dos apoios é dirigido para artistas locais, o que faz sentido e é muito bom, mas torna tudo muito mais difícil para os que chegam de fora à procura de continuar a sua vida neste país e que não são percebidos pelas instituições como locais. Mas começámos a associação com zero recursos e a verdade é que já conseguimos chegar até aqui”, complementa Aixa, lembrando que, além da Soma Cultura, cada uma das dirigentes tem o seu trabalho a tempo inteiro. 

À data da conversa com a Time Out, no final de Junho, a associação tinha vários projectos em mãos, todos à espera de financiamento, desde formações em áreas como a identidade artística aos direitos legais no mundo da música. “Havendo apoios, nós estamos cá”, solta Aixa, que aproveita para lançar uma chamada à população: “Estamos sempre à procura de artistas que queiram juntar-se a nós. Um dos desafios é saber onde estão.”

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